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Paulo Saldanha

AS RECORDAÇÕES DO GLAUCO, MEU IRMÃO



Esse irmão tão querido que me apareceu em 1986 e, para alegria geral reapareceu em 2013, fez-me nova visita agora em junho de 2015. Antes, estivemos juntos em sua casa no município de Santa Izabel, pra lá de Arujá, no estado de São Paulo.

E nos nossos papos ficaram recorrentes as suas vivências ali no Ribeirão, notadamente nas cercanias da ponte de ferro, onde o trem, o kalamazoo, as litorinas, as cegonhas da EFMM desfilavam nos trilhos daquela que ficou conhecida como a Mãe do Território, logo, por transferência genética, do estado de Rondônia: a ferrovia de Deus.

Dizia ele:

“corria o ano de 1947, os dias se embalavam no compasso modorrento da ausência de maiores aventuras, mas se caçava e se pescava muito, em face da abundância que reinava absoluta porque a natureza tão pródiga, não se sentia aviltada e nem agredida.

Uma improvisada sede, ali em cima das pedras que separavam o igarapé do rio Madeira, bem na foz, a vida se conjugava no verbo assistir aos silvícolas, protegendo-os, apoiando-os, orientando-os e ministrando remédios que pudessem minorar as suas dores, a febre, a tosse e outras mazelas.

Comitivas saiam de ubás movidas por motores Archimedes Penta 10-12, conduzidas ora pelos funcionários do SPI (hoje FUNAI), ora pelos próprios índios treinados pelos agentes públicos, entre aqueles que mais se destacassem no desempenho por conta do talento próprio identificado.

 Um desses piloteiros era o SABUDIN, mestiço de índia com negro nordestino que aqui aportou como seringueiro. Rapaz corajoso, afável, simpático, o sabudin era a personificação do homem bem humorado e participativo.

Sabudin era atarracado, bem forte, não teria 1,62 m, moreno escuro, já lhe faltavam alguns dentes.

Restou a lembrança de que homens e crianças, enquanto não havia tráfego na ferrovia, pulavam da ponte, sem temer as arraias, poraquês e jacarés que ali transitavam um tanto soberbos. E, ainda, do cenário das mantas de carne de bichos selvagens e os peixes salgados (sujeitos as aves de rapina e animais), que ficavam expostos, ao relento, secando para servirem de repasto nos momentos de necessidade.

Naquele tempo era comum a caça à anta, porcos selvagens, paca, cotia e cervos, Mas se enaltecia um prato feito com um mutum, jacu ou nambu.

Na vertente da pescaria aqueles intrépidos moradores do lugar, enfrentavam as corredeiras e traziam jaús, piraíbas, jatuaranas, tucunarés, pirapitingas, tambaquis, que se transformavam em mantas salgadas, assim como aquelas carnes secas, também salgadas, que traziam dos confins e das nascentes dos igarapés mais ermos da região.

Entrementes, as máquinas 16 e 17 mexiam com a cabeça e as emoções daquele menino de 7 anos. Recorda que, quando havia passageiros, uma bandeira vermelha ficava tremulando na mão de um encarregado, com a obrigação da máquina líder parar e depois conduzir índios e brancos ao seu destino.

E o Sabudin subia e descia o igarapé Ribeirão, sem se dar conta de que era alvo da cobiça de um bicho muito grande, que o espreitava com avidez, dada a desvantagem que o condicionava negativamente como alvo, porque era o último, quase sempre, na popa daquela ubá enorme.

Um certo dia, um alvoroço tomou conta ali no entorno da ponte; gritos e uma histeria explodiram como do nada. É que quase chegando ao porto de destino, algo muito grande surgiu da água, abocanhou o Sabudin e emergiu mergulhando nas profundezas. Um barulho se fez presente e as águas testemunharam um sequestro seguido de morte posto que Sabudin jamais retornou. Uma marola reinou no ambiente atingindo reiteradamente as margens do riachão, até que as águas, minutos depois, ficaram mansamente pacificadas.

Alguém pelo canto do olho viu aquele vulto enorme, escuro, da água surgindo e à água retornou, fazendo um estardalhaço, mediante a força e intensidade com que se moveu. Sabudin deu um gemido e nada mais pôde apresentar como reação, deixando a sua jovialidade como marca registrada nas recordações do seu povo.

E os moradores dali nunca mais foram os mesmos, os pulos da ponte só muito tempo depois foram retomados porque a lembrança do desaparecimento do Sabudin aos poucos se esvaiu, mas eternizou-se no tempo e não se perdeu na tábua da história”.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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