Terça-feira, 6 de outubro de 2009 - 12h07
Paulo Cordeiro Saldanha
Naquele tempo –diriam os evangelistas– vivia em Guajará-Mirim a dona Biô. No Batismo de Beatriz, era esse o seu nome, deve ter havido uma algazarra danada, a demonstrar que Biô, quando crescesse, seria a emblemática criatura que foi, porque a sua vida foi construída em cima da alegria, do bom humor, da sagacidade e da irreverência que traduziam a inteligência que harmonizava aquela criatura pequena no tamanho, mais gigante no agir.
Ela, como Mãe do Eduardo e da Crinaura, esta uma competente enfermeira que auxiliava no Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (o nome do hoje Hospital Regional) tornou-se, em face do segundo casamento da filha, sogra do José Belo, um Potiguar trabalhador, jovial e sério. O Zé Belo gaguejava. E muito! Tanto gaguejava que escreveu na carroça da qual era o proprietário, o nome do boi Calçadinho, que a puxava. E acabou lascando na lateral do veículo “CAL, CAL, CAL Calçadinho”.
Naquele tempo a “infra-estrutura de transportes” (que nome pomposo!) era constituída pelas carroças do Pedro Misturado, Militão Fernandes Leite, Zé Belo, João Paulo, Camarão e outros, cujos nomes esqueci.
Na chegada e na saída dos trens os carroceiros ganhavam bom dinheiro no carregamento e na descarga das plataformas da ferrovia ou na partida ou desembarque dos barcos do SNG. E o movimento era enorme! Os nossos profissionais especialistas no transporte de carga tinham a sua clientela própria: os comerciantes, os seringalistas ou os empreiteiros de obras.
Eles transportavam do tijolo ao cimento, dos gêneros à borracha, da madeira aos remédios, enfim, toda uma multiplicidade de mercadorias e de produtos de quaisquer origens, vegetal, animal e industrial. As carroças rangiam traduzindo o peso que estava sendo transportado.
Pois bem! A sogra do Zé Belo, a nossa querida dona Biô, era uma pessoa encantadora. Sua voz tão meiga, pequena, era uma delícia para os nossos ouvidos, ainda a tenho tão viva no meu cérebro.
Ela adorava cantar Valsas! Quando brigava com o marido, enviava mensagens para ele, através das bem construídas letras das músicas de então.
Era especialista em salgadinhos e doces e ganhava dinheiro com esse talento. Também costurava e bordava com uma maestria incomum. Auxiliou a criar os filhos de Crinaura, sua abnegada filha, por sinal, comadre de meus Pais.
Crinaura, não fugindo a boa tradição da Mãe, era dona de contagiante bom humor, às vezes picante, às vezes irreverente para os tempos de então.
Mas dona Biô nos impressionava a todos! Sua estatura creio que não ultrapassava 1,55 metros, mas, como disse, era grande na personalidade tão forte e pessoa iluminada. Parece-me que até Parteira foi, ante a ausência de médicos naquela época. Pessoa querida, achava-se sempre pronta para apoiar alguém enfermo ou uma família enlutada. As palavras que pronunciava se estivesse de bom humor, jamais levavam uma agressão, mas, ao contrário, transmitiam conforto e calor humano.
Isso não retirava dela o lado irrequieto, irreverente, impulsivo no agir e no contar de um “causo”.
Quando observava uma injustiça praticada por algum poderoso de plantão saía-se com essa: “–Esse daí não tem no ... o que periquito roa e agora se arvora em condições de agredir e humilhar...” E ela crescia por conta da sua revolta contra a injustiça, razão de sua indignação.
Ainda pré-adolescente ouvi sem querer uma história assaz interessante, vivida por ela, nos anos 40: é que o marido viajara e longos meses passara ausente, deixando-a saudosa e carente. O trem apitou lá pelas bandas do Igarapé Bananeira. Ela, preocupada em receber o esposo com doces e quitutes, se distraíra em relação ao horário de chegada.
Atrás da casa havia um Banheiro, perto do poço. Correu para lá para banhar-se. O tempo urgia e ela queria estar bem perfumada, na borda da estação para abraçar o companheiro, demonstrando toda a extensão da danada da saudade, que insistia em bater inclemente no seu peito e em outras partes do seu corpo de mulher apaixonada. Banhou-se! Correu para o quarto para trocar-se. A pressa era tamanha que se assustou com novo apito da locomotiva...
O trem apitou mais perto. Ela se danou! Foi vestindo, de forma atropelada as suas roupas de baixo, para depois colocar o vestido adequado. A calcinha cheia de botões, na pressa, foi colocada de forma equivocada. Uma das pernas da peça vestia todo o bem delineado corpo, sobrando a outra parte, fato não observado. O seu deslocamento prejudicado a obrigava a andar devagar roçando uma coxa à outra. E passou a se desesperar! Uma ternura sexual ia alimentando os seus sentidos!
E o trem apitou de novo. Dona Biô envergando a anágua e o vestido correu para a estação, sem perceber que sobrava a outra parte da calcinha na lateral (e, embora coberta pelo vestido, fazia um volume no glúteo), o que dificultava a sua locomoção, já que o deslocamento se processava em cima de um restrito caminhar, ante a dificuldade de espaçar os passos.
Porém dona Biô estava carente de afeto. E o desespero de rever o marido, cujas saudades eram imensas, foi se transformando numa ansiedade infinitamente maior, já que, em pensamento, aquelas imagens na dimensão para lá de voluptuosas, a fizeram perder o controle na demonstração do carinho guardado apenas para as quatro paredes. E sapecou estrondoso beijo na boca do pudico esposo, numa época em que demonstrações em público daquela natureza não se perdoava ao temerário que as produzisse.
E dona Biô foi perdoada!
Mas dona Biô foi uma grande mulher, teria participado das campanhas para a criação do Município e para a criação do Território Federal do Guaporé, papel, até onde sei, teve a participação e o apoio de outras mulheres, que, aquelas alturas, já sabiam lutar pelos direitos que a cidadania lhes obrigava a pugnar, ao lado dos maridos e dos filhos.
Ela, a nossa Biô, se achava adiante do seu tempo...
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