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Paulo Saldanha

Crinho, o Rio e o Pintado Assassino



Numa das minhas viagens ao Mato Grosso, na casa de Juca Bucair e cercado de amor fraterno, inclusive de seu genro Orlando Baleroni, o temerário, de sua doce filha Helena, Ilma, Munir e Marlene eu era uma ilha orgulhosa dos irmãos e sobrinhos por todos os lados.

As histórias fluíam, até que a música na voz do criativo e talentoso Gentil Bussiki passou a ser ouvida atentamente. A história do Crinho foi cantada, com direito ao belíssimo poema que a adornava. E me comovi!

A letra trazia a história real de Crinho, um negro bonito e pequeno, pescador voluntarioso e determinado, que, das barrancas do rio Cuiabá, extraia o meio para sustentar a enorme família, seu orgulho e engrandecimento.

Mas essa ocupação já não lhe rendia o suficiente apesar da longa lida nesse metiê, que lhe marcara a pele escura curtida de sol a sol, assinalando na superfície do rosto, nas pernas e nos braços sulcos derivados da longa exposição aos seus raios, com registros ainda dos acidentes com anzóis e dentes afiados dos peixes recolhidos de forma distraída.

Porém, a canoa, sua companheira inseparável, era a mesma em 35 anos de atividade diuturnamente exercitada. Pequena, rasa e já remendada nas duas pontas.

Naquela primavera, com o rio mais baixo em função da inconsequente ação deletéria do homem, os peixes escasseavam... porém ele, o Crinho (não se sabe o nome de batismo), precisava botar comida na envelhecida mesa da sua cozinha.

Estatura pequena, franzina mesmo, acordava por volta das 4 horas da madrugada; levava anzóis de bom calibre, um arpão, terçado e um bornal, e saía remando, ainda bem escuro. Se tivesse lua nem adiantava percorrer cada curva do Cuiabá, modorrento, antes tão excitado e vaidoso, artéria através da qual o progresso e o desenvolvimento chegavam, rio já castigado pelas agressões humanas ao seu leito, quando jazia calado e amuado com poucos habitantes no seu fundo.

O manancial agredido pelo homem que, por inadvertência e falta de educação ambiental, lançava esgoto abaixo toneladas de detritos, inclusive produtos químicos, que iam matando a vida e reduzindo a oferta de alimentos em longos trechos do rio Cuiabá, ou no Cuiabazinho e Coxipó.

Pacu, surubim, botoado, pintado, curimbatá, piraputanga, dourado, cachara e bagres, entre outros, seriam a espécies a serem fisgadas por Crinho.

          Ernest Heminguay eternizou o seu Santiago como a figura central no livro “O Velho e o Mar”. Ele, um antigo pescador, num determinado período de 84 dias esteve bastante azarado, pois não conseguia fisgar um peixe por menor que fosse.

         Mas Santiago tinha um amigo chamado Manolin, que o incentivava a não desistir. Crinho, com enorme fila de fãs, pescava solitário. A maré para ambos não estava para peixe! Crinho, na pior, sabia que no rio não tem maré. Santiago no 85° dia fisga um peixe descomunal e o mata; entretanto, ao retornar, vê que os tubarões comeram toda a carne do pescado rebocado na pequena traineira. Mesmo assim é festejado por toda a vila aonde vivia, pois observaram pelo esqueleto a descomunal carcaça do enorme espadarte (cinco metros e 700 kg).

           Crinho, assim como Santiago, também naquele dia fisgou um pintado dos grandes, luta quase desigual, posto a canoa ser pequena para tamanho bicho gigantesco como aquele. Mas, raçudo, Crinho raciocinava que precisava valer-se da sua inteligência e ia cansando o monstro que o levava à deriva, de uma margem à outra, parecendo demonstrar que jamais iria entregar-se.

            E o nosso herói até ia conseguindo esgrimir ações que pareciam conduzir ao seu intento: cansar o tal pintadão. O sol já se fazia bem alto quando de longe vislumbrou a ponte velha que une Várzea Grande a Cuiabá; o peixe fisgado às vezes parava para pegar fôlego (se permitirem valer-me de uma expressão humana), fazendo supor que estava se entregando.

            E ao chegar à confluência do rio Coxipó com o rio Cuiabá, num que parecia ser o seu último estertor no barranco de cima, o pescado entrou numa paliçada com relativa velocidade, puxando a canoa do Crinho que, mantendo o domínio da situação, prendia entre as mãos o já endiabrado e descomunal peixe. Eis que, na tentativa de cansá-lo mais um pouco, dá um puxão e o peixe grande retruca com outro, detalhe que leva o pescador a desequilibrar-se... e sente a pequena canoa afundar. Preocupando-se com a possibilidade de perder o seu troféu, representante da possibilidade de mais mercadoria na sua despensa, lançou-se na água e o abraçou com intensa força.

              Abraço fatal, porém contra Crinho, que na ansiedade de buscar prender a fera entre os seus próprios braços, sentiu uma dor enorme e sangrou. Qual faca afiada, um dos ferrões pontiagudos do Pintado o feriu mortalmente na altura do peito e transpassou o generoso coração.

               Ora, sabe-se que o pintado, a exemplo de outros peixes de couro, tem ferrão ósseo nas nadadeiras dorsais e peitorais, capazes de produzir danos a pescadores por mais experientes que sejam. Em algumas regiões brasileiras ferrão é sinônimo de esporão.

               Mesmo assim, Crinho, agarrado ao troféu, olhos vidrados, não o largou e ambos foram encontrados mortos naquele abraço sinistro.

               Crinho deixou saudades porque tinha um coração de menino, era valente e simpático, passou pela vida e viveu!

               Nessa luta do homem com os bichos da natureza deu empate. Não houve sobreviventes. Crinho, embora experiente e perseverante, sucumbiu porque não teve a sorte de estar numa canoa maior; mas, como aquele ex-presidente, saiu da vida... e ficou na história!

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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