Terça-feira, 13 de abril de 2010 - 12h17
Paulo Cordeiro Saldanha (*)
Ela era imensa e fazia tanta sombra! Era frondosa e produzia tantos frutos! Discreta, ouvia histórias e outras narrativas, mas não saia tagarelando os segredos que, atenta, vinha escutando pela vida afora.
Sob suas folhagens, a Tuca, Aurora, Valvinda e a Anely trocavam sonhos, faziam planos e discutiam temas. Ali liam livros e saboreavam os frutos, como presente da soberana árvore.
E riam! E gargalhavam sobre os fatos acontecidos, e não percebiam que ela, expressando um tímido sorriso “a La” Mona Lisa, a Gioconda, do italiano Leonardo da Vinci, sorria também.
Sob aquela generosa sombra as meninas bordavam, pregavam botões, cantavam e preparavam as fantasias, no tempo dos carnavais.
Ah! Se ela pudesse fantasiar-se também, certamente sairia, vaidosa, nos blocos carnavalescos, disfarçada de Pirata ou de Colombina, apesar da estatura descomunal que ostentava. Aquela árvore, a sensível Mangueira, também tinha seus devaneios...
Isso porque a animação daquele grupo de moças era tanta, a alegria era tão imensa, que ela se “contagiava” com tamanha demonstração, que sintetizava a expectativa que o reinado de Momo provocava naquela troupe de beldades que apenas desejava espargir a satisfação de viver intensamente as festas e os carnavais guajaramirenses.
E ela, a mangueira, ficava feliz ao observar a felicidade que as moças ali da cidade, representadas pelas Princesinhas do reinado Momesco– as Perez e Câmara– desejavam irradiar nos clubes onde iriam pontificar, ao lado das demais jovens da terrinha.
A mangueira me contou, meio acanhada, pedindo desculpas pela indiscrição, que um dia viu as meninas bastante ansiosas, emocionadas, inseguras e trêmulas.
É que o Charuto, um moreno magro, relativamente alto, com o rosto cheio de marcas, adquiridas por conta de uma doença, sempre visto embriagado, foi encontrado morto na serraria dos Barcânias, ali tão próxima, ao lado da Igreja Batista, na Avenida Leopoldo de Matos.
E elas, fugindo a vigilância dos Pais, foram também se despedir do Charuto. E estavam todas bastante contritas, rezando pela alma do falecido, num velório improvisado na própria marcenaria por exigência do Melchiades Barcânias, que tanto respeitava o Charuto, seu grande amigo, a quem perdoava pelas bebedeiras e sempre o auxiliava financeiramente.
“De repente, não mais que de repente”, como diria o Poetinha Maior, eis que, por conta de um “Creio em Deus Pai”, seguido de um “Pai Nosso” tão intensamente rezados, o Charuto se levanta e dá uma bronca daquelas, pondo fim à emoção litúrgica do próprio velório, após despertar do sono “quase eterno” que o envolvia.
Foi uma correria daquelas! Sapatos ficaram no salão, gritos de terror foram ecoados, um pânico geral foi observado. A Aurora, já perto da Igrejinha da Praça Mario Correia, levara um queda, após fazer 200 metros em apenas 15 segundos, quando superou a marca de todas as olimpíadas. Não ficou ninguém, obrigando o temporário defunto a fazer um esforço hercúleo para sair do Caixão.
E a mangueira foi testemunha do bater forte dos corações daquelas meninas, que ainda chorando, derramavam suas lágrimas, assustadas, trêmulas, com uma taquicardia que fazia uns tongs, tongs, tongs (onomatopeia de coração acelerado) serem ouvidos lá na Vila Econômica.
E o Charuto, andando meio trôpego, foi caminhando em direção ao Bar da esquina, na tentativa de beber uma pinga, ainda sem compreender o porquê de o desejarem enterrar, quando ainda estava vivo, vivinho da Silva. Por isso se apropriou do Caixão e passou a oferecer para venda, já que se intitulava o dono (e proprietário) do tal esquife.
E a velha mangueira, visando a acalmar o ambiente abriu ainda mais os seus braços e ampliando a sombra, recebeu do vento o sopro e a brisa que concorreram para desanuviar o local. E deu uma piscadela para o sol sinalizando que ampliasse o reflexo da sua luz e transformasse aquele cenário de tristeza na alegria mais absoluta, mediante a interpretação mais lógica para aquele fato - uma catalepsia–que atingira o Charuto teve inicio e fim. E todos, depois, acabaram rindo daquela inusitada situação.
Nesse dia não teve expediente na Marcenaria dos Barcanias e o local de trabalho se transformou numa pista de dança e num local em que Cocal e refresco de groselha foram servidos em profusão. Até a Florisbela, com sua indumentária cigana, refestelou-se no salão improvisado e dançou até altas horas da noite, celebrando a vida do Charuto.
E o Charuto sorriu feliz! E lá da porta, já de noite, fez um sinal de positivo para a Mangueira, cujas folhas refletiam a luz do luar.
Mas um dia, em nome do progresso e por conta de uma nova edificação, ela tombou, sem um grito, embora a dilacerante dor que a alcançou tenha sido enorme, curvou-se lentamente, contraindo seus sentidos, fechou seus olhos, tentou aspirar o ar e... expirou. Uma motosserra concorreu para a sua precoce extinção. Ainda iria fazer 90 anos.
E o Charuto já não vivia para, ainda que de longe, lhe endereçar um sinal de negativo, pranteando a sua agonia. Devem ter-se encontrado no andar de cima...
O Charuto, bem antes dela, que sofrera um surto de catalepsia, acabou recuperando-se. Aquela Mangueira, atingida por certeiro sabre de motosserra, não! Ironia da vida. Ou da morte!
E a mangueira perdendo a vida foi abraçada pela morte e hoje ninguém mais fala na sua sombra e nos seus frutos. Daí a reverência e a enorme saudade encruada no nosso peito pela representação de vida que ela expandia.
E, no instante dos seus últimos estertores, ao derredor, o vento e o sol acabaram derramando furtivas lágrimas se despedindo da velha senhora, a mangueira, que reinara soberana, décadas e décadas, no quintal do “velho” Perez.
(*)Membro Fundador da Academia Guajaramirense de Letras-AGL e Membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia-ACLER
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