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Paulo Saldanha

CRÔNICAS GUAJARAMIRENSES: Dulce e Doce


Ela, a Dulce, tão suave, ele tão doce. Um cuidava do outro com desvelo e amor. Dialogavam o tempo todo. À noite se recolhiam lá no alto, como se aquele lugar simbolizasse o lar, eternizado nas suas lembranças mais remotas.

Vestiam-se sempre com as mesmas cores: tecido esverdeado, com outras tonalidades, matizes negras, amarelas, brancas e azuis, o azul tão vivo como vivos e intensos eram os dias de ambos;

Mas, lá do chão, invejosa, dona Ji os olhava com expressão maldosa... E dava tratos à bola, com fúria matadora.

Nesse interregno aquele casal –como se acaso pudessem– se davam às mãos e desfilavam tão cheios de graça naquele ambiente, para deleite dos demais passantes. Simpáticos! seriam a delícia dos olhos daqueles circunstantes que naquela praça se encontravam, divertindo-se com as tiradas do casal alegre detentor de elevado astral.

Doce, voz grave circulava entre as mesas e, como se fora mal educado retirava das mesas os amendoins, as pipocas e frutas, levando para a sua parceira um pouco do que amealhava.

Dulce, tão meiga, voz com timbre de cantadora, fazia evoluções e inebriava as mulheres e crianças daquele pedaço. Falava pelos cotovelos!

O certo é que o casal contagiava, com a sua alegria e luz própria, ampliando a energia do encantado espaço ecológico.

Dona Ji, todavia, escondida atrás da moita, se consumia na perfídia, ampliando a inveja e aumentava seus desejos inconfessáveis que nutria em relação àqueles dois.

E de onde estava planejava e sonhava! Seus sonhos macabros, intransferíveis para outrem, eram acalentados na expressão mais forte do insano desejo de posse, vontade de dominar ou um ou outro, deixando-os sem chance de resistência, prostrando-os sob a pressão maior de seus instintos mais primitivos, com que a natureza a premiou.

Dona Ji um dia resolveu ousar.

Numa noite olhando lá de baixo viu quando o casal, ao entardecer, foi recolhendo-se no alto da sua moradia.

E a noite chegou escura como o breu! Dissimulada, Dona Ji moveu-se quando a vida do lugar adormecia; os sons se calavam e as camas do entorno gemiam ao compasso dos movimentos dos seres vivos; ela foi subindo, movimento a movimento, perscrutando ao derredor em direção ao aconchego da dupla, amada amante da vida, no espaço aonde se acasalava com paixão irrefreável.

Movimentos ardilosos poderiam ser observados se a escuridão não fosse tão absoluta. E foi dona Ji subindo e, subindo lentamente, surpreendeu Dulce dormindo ao lado do amado.

Todavia, ao fazer um barulho não previsto, Dulce acordou e, ainda que pressionada, pôde alertar o companheiro contra aquela invasão, para ela tão fatal.

Doce, tão viril e, ante a surpresa do momento, alertado pela consorte, saiu do teatro daquela guerra inventada por um dos lados, declarada por dona Ji. Doce, ainda tentou salvar companheira do ataque mortal, em vão. É que Dona Ji era bem mais forte e já apertava a cabeça e o pescoço de Dulce que se debatia, quase sem voz.

Sorrateira dona Ji, foi descendo com a sua presa já inerte e pálida! Triunfante a assassina escafedeu-se, saindo dos olhos do viúvo inconsolável, mantendo entre os dedos pedaços do tecido multicolorido da amada.

Na manhã seguinte, vários gritos roucos de dor foram ouvidos! Desde então Doce, sozinho, anda desorientado e triste. Sem sua Dulce, não procurou outra companhia e vai vagando, voando baixo, olhos marejados, cantando um lamento desafinado, chorando roucamente a perda da arara Dulce, sua dileta alma gêmea, durante anos e anos, a partir da sanha traiçoeira da Jibóia invejosa, que fizera um pacto de morte contra aqueles dois viventes, criaturas de Deus, que encantavam os turistas que visitavam o lugar.

A alegria de antes desembocou numa tristeza infinita e, Doce continua vivo, mas pleno de saudade, já anda trôpego, canta tão pouco e, certamente, jamais voará outras vezes ao lado de outra arara.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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