Segunda-feira, 22 de março de 2010 - 16h44
AMAZÔNIAS
Paulo Cordeiro Saldanha(*)
Foto: Montezuma Cruz
Desde 1998 não vejo as aguas do rio Guaporé. Na meninice sempre passávamos (a familia e eu) as férias em Ilha das Flores, a Fazendo do meu Tio João Saldanha. Aprendi com meu Pai a ver e a admirar a beleza que envolve todo aquele vale.
Numa dessas viagens meu Pai documentou em seu cérebro uma cena difícil de ser vista: uma onça da cor preta nadando em direção a uma das margens, assustada com o barulho e com o tamanho da composição fluvial. Ao chegar perto do barranco, com a agilidade comum aos felinos, saltou de dentro do rio para o alto do barranco, num impulso só, assegurando a sua proteção com um pulo de cerca de quatro metros, que a separava do leito do rio e a terra firme, na parte bem acima.
Meu pai sempre contava esse fato e não se cansava de repetir essa história. E a decantava quantas vezes seu “público” (os amigos e compadres) desejasse ouvir.
É comum nos rios que formam as bacias do Guaporé/Mamoré, a observação de animais, alguns enormes, - sucuris, onças, tamanduás, antas, além de tartarugas, tracajás, capitarís e roedores, - nos barrancos, em cuja orla descem para saciar a sede, local onde os predadores descobrem seus almoços e seus jantares.
No período de seca, quando os rios têm as suas águas reduzidas, aparecem as praias brancas, tão brancas, algumas bastante extensas e tão lindas, que chegam a comover. Muitas vezes, nos baixios, aquelas praias que nem aparecem, mas estão lá, inclusive no meio do rio, acabam dificultando a navegação, fazendo com que os barcos fiquem encalhados.
O processo de desencalhe acaba sendo uma festa! Todos caem na água, molham-se, fazem fôrça, na tentativa de ajudar o motor a “roncar” mais forte, criando um movimento de agua e areia tamanho, objetivando livrar-se da temporária ”prisão”. Cautela apenas com as arraias que não perdoam quando algum infeliz lhes pisa o corpo de forma arredondada. Seu veneno faz com que o indigitado grite, pelo menos, durante 24 horas; e a cicatrização leva uns 40 dias...
E no verão, quando as praias ficam mais salientes, nas noites de lua cheia, o espetáculo fica mais inebriante! Onças descem para a ceia; viram as tartarugas, em processo de desova, e com a sua pata arrancam a casca grossa dos indefesos quelônios e se fartam à saciedade.
Mas, nem a brutalidade de uma cena mais forte retira do observador a surpresa que se traduz com a visão daquele cenário estonteante: a lua espraiada na areia fina, refletida nas águas límpidas e negras do Guaporé. O vento sopra, uma camada fina de areia sobe um pouco, eleva-se, como a querer registrar de um plano mais alto a beleza que se recolhe daquele espelho de água cristalina, que traduz encantamento e a obrigação de se agradecer a Deus por tamanha benevolência.
E quando a praia surge ao lado ou embaixo do barranco que enfeixa o pantanal rondoniense, cheio de magia, ecoando seus sons próprios, extraídos da garganta de um pássaro noturno, ou de uma onça à procura de companhia, ai então a natureza se curva reverentemente para retribuir o aplauso contido no êxtase que se vê nos olhos humanos, de quem tem alma e sentimento para admirar aqueles abençoados cenários, emoldurados pelo reflexo da lua, arquitetados por Ele, o Soberano Senhor dos mundos.
E no dia seguinte, como indicação da luz, o sol vai despertando a passarada; o seu multicolorido anuncia mais renascer! O orvalho sugado pelas folhas durante a noite distribui suas gotas a partir do abraço caloroso que as centelhas da vibração do Astro-Rei vai distribuindo por onde está chegando. Como conta-gotas, aqueles líquidos vão servindo de energia à terra que, parecendo achar-se com a boca aberta, recolhe a bênção para reciclar a vida que se acha sob os seus pés.
Ah! O vale abençoado de minha infância, rio enriquecido por suas baías de aguas negras ou claras, mas cheias de vida gerada no útero amazônico, tão pródigo na distribuição de cenários comoventes, porque representam a mão e o olhar de Deus, como Criador e Benfeitor.
Ah! O Vale encantado que comove e abençoa. Ah! O Vale de minhas recordações primeiras como observador da natureza exuberante, que traduz enlevo e medo, através de suas corredeiras, sustentação natural para que nas secas, suas aguas possam ser freadas para não escancarar, de forma bem ampla, as praias de alvura ímpar, prejudicando a trafegabilidade das embarcações que aceitarem o desafio de caminhar em direção à nascente do legendário rio.
Eu, que espero retornar, vou daqui vivendo das recordações, esperando que o homem às vezes tão predador não se esqueça de zelar pelas cabeceiras de nossas estradas líquidas, protegendo seus afluentes, esculpindo sentimentos que possam elevar hinos àquele bioma, àquele palco onde todos os atores se expressam gritando pela vida perene, sem destruição, que resulte honra e glória a Deus, pelo legado do meio ambiente.
(*) Membro da Academia Guajaramirense de Letras-AGL e da Academia de Letras de Rondônia-ACLER.
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