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Paulo Saldanha

CRÔNICAS GUAJARAMIRENSES: No tempo do Zé Doido vivia a Florisbela


 
Paulo Cordeiro Saldanha 

Alto, magro, moreno claro, adorava um chapéu e óculos escuros, para proteger, segundo ele, os “seus lindos olhos castanhos”. Muito despachado, conversava gesticulando e, muitas vezes, dependendo do interesse do interlocutor, exagerava no tom da voz. Esse era o Zé Doido, ídolo de minha irmã Anete, quando criança, amigo de meus Pais, e que, quando baixava em direção à cidade, na canoa enorme, trazia como produção do seu Sitio, na região das Sete Ilhas, laranja, lima, tangerina, galinha, ovos e muitos cachos de banana. 

Ele afirmava que tinha sido cangaceiro, antes de aportar no Abunã e, depois, em Guajará, onde fora seringueiro. Chegou a afirmar que essa “profissão” dentro do cangaço ele a teria exercido ao lado do Lampião... 

Apesar do andar ereto, seus passos eram movimentados numa cadência miúda, porém, o forte era o bom humor, pois jamais deixava de ser espontâneo, brincalhão, todavia, sempre muito respeitador....... 

O Zé tinha um inenarrável orgulho do dente de ouro que ostentava num dos seus caninos. O olho prejudicado ele justificava em cima de uma luta quando a serviço do cangaço, briga essa que lhe trincou duas costelas. Outro ponto a destacar, na sua personalidade, era a irreverência e a sagacidade de que se valia para sair de uma situação incômoda. 

O certo é que o Zé Doido quando estava em Guajará-Mirim, sempre fazia as refeições com a nossa família. Falante, inebriava a Anete ainda menina, contando casos como Cangaceiro. É possível que tenha inventado algumas das suas estórias, porém era uma delícia ouvi-lo, eis que mexia com o nosso imaginário, carente de fantasias que pudessem traduzir aventuras daquele naipe. 

No Abunã, quando alguém morreu, ele recebeu o encargo de preparar o caixão, visando a um enterro decente. Muito afobado, esqueceu de medir o defunto. Quando foram colocar o homem no esquife improvisado observou-se que o morto era bem maior. E o enterro não poderia tardar. Resultado, muito criativo, o Zé Doido cerrou as pernas do indigitado e as colocou em cima do corpo, solucionando o problema. 

Noutra feita, uma de suas namoradas de momento, pisando na bola, foi descoberta como traidora. Ele, valendo-se de um artefato de pólvora, após montar uma campana, esperou um tempo, após ver o tal “sócio na alcova de uma dama” adentrar na casa aonde iria se consumar uma traição, acendeu o pavio da bomba caseira e lançou-a bem perto da janela do quarto onde “amantes se davam sem travesseiros soltos, mas com roupas no chão”. Antes gritou: 

- Salve-se quem puder! E os apaixonados saíram nus de dentro da casa, apavorados com tamanha violência. 

E ele riu às escâncaras, acabando com aquele frágil romance. 

Naquele tempo a cidade era ainda brindada com a exótica figura da Florisbela, que, toda faceira, pintava-se e se maquiava de forma extravagante. Chamava a atenção também pela irreverência e audácia na forma de vestir-se. 

A Florisbela era comadre dos meus pais. Usava uma roupa toda estampada, brincos de argolas graúdas, pulseiras e se valia de rouge e de um batom bem vermelho apelativo. Parecia uma mulher cigana! Sua cabeleira, quase sempre adornada com um lenço, dava a ela um ar exótico e espalhafatoso. Conversava muito alto e aos domingos saía para visitar os conhecidos. Chegava bem cedo e evocando os chistes em voga, alimentava uma conversação de forma bem animada e mordaz.. Antes dos outros, ela se amava daquele jeito e gostava de se ver assim. 

Repito, às vezes parecia uma cigana. Tinha um casal de filhos. Um rapaz e uma mocinha. Sua filha, a Lindomar, também exagerava no vestuário. Brigavam e se altercavam em público, mas eram unidas. Viviam ali na Av. Benjamin Constant, ao lado da primeira loja de “O Setembrino”. 

Uma vez, convidada para cantar no show improvisado pelos nossos “produtores da arte”, cantou de forma afinada, toda fantasiada de baiana, no palco do Cine Melhem. Lembro-me da música “Me deixa em Paz”, regravada agora pela Ana Carolina, com os seguintes versos: “Se você não me queria/Não devia me procurar/Não devia me iludir/Nem deixar eu me apaixonar/Se você não me queria/Não devia me procurar/Não devia me iludir”... 

E ela olhava de forma acintosa apontando para o Ginho Melhem, irmão do Melhenzinho, Juju, Soninha e do Antônio, a querer insinuar-se, apontando em direção onde ele se encontrava, de um jeito atrevido, provocando a gargalhada de uma platéia tão vibrante. Note-se que o Ginho, um rapaz bonito e charmoso, deveria ter uns 18 anos e ela mais de 55, com seus lábios pintados e maquiada de maneira assaz hilariante. 

A Florisbela não fazia mal a ninguém! Vestia-se daquele jeito muito seu, porque se sentia feliz assim! Todavia, chamava a atenção pela exuberância como caminhava, a querer provocar e desafiar os olhares e a cobiça dos marmanjos por onde desfilava. E as ruas eram a sua passarela e, as calçadas, o lugar onde pontificava a sua enorme plateia. 

A cidade tinha essas figuras como a do Zé Doido e Florisbela, ambos simpatíssimos e que marcaram suas presenças num tempo em que se andava pelas ruas tranquilas e se convivia com o próximo tão próximo, sem queixumes, sem medos e sem atropelos, pois aqui, apesar da ausência do progresso, se respirava harmonia, solidariedade e amor fraternal. Havia tempo para se olhar “as estrelas tão serenas, qual diluvios de falenas que andavam tontas ao luar”... E quando o astral ficava silente, dedicávamos os segundos para “escutar o nome dela entre as endechas, as dolorosas queixas ao luar”...

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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