Quinta-feira, 5 de junho de 2014 - 15h49
Madrugada de novembro. O dia seguinte seria o dois, dedicado aos mortos e chegava cercado de mistério, envolto nas lembranças dos vivos que focavam os seus pensamentos na direção daqueles que partiram.
Um ar de tristeza cobria o horizonte guajaramirense. Um caminhante descia a XV de Novembro rumo ao porto, onde existia a Aduana, construída sob palafita, edificação essa toda em madeira, coberta por zinco.
Descia representa mais uma força de expressão, posto que Salve Lindo Pendão da Esperança, caminhava trôpego, amedrontado e meio ébrio. Esse um tinha tanto medo de alma, mas tanto medo, que colocava algodão na fechadura da porta para impedir que algum espírito penetrasse no quarto de dormir. Quando embarcado fechava o mosquiteiro de tal forma que ente algum ou alma do outro mundo jamais poderia bater no seu ombro, acordando-o.
Todavia, convém relatar algo mais sobre esse personagem.
Para o Salve Lindo Pendão da Esperança, nome de batismo dado em homenagem ao Hino da Bandeira pelo pai, Cabo Nacionalino Augusto da Paz Ypiranga, orgulhoso de ter sido Pracinha, Expedicionário da FEB, guerreiro nos campos italianos.
Seu genitor era um herói. Pai herói seria o título de uma novela que se inspirasse na valentia desse homem, chefe de uma família em que 8 filhos faziam parte desse clã, formado com Valentina Gentil Ypiranga, a destemida.
Pai e mãe determinados, intrépidos, desafiadores, acostumados a vencer dificuldades. Ocorre, que Salve Lindo Pendão da Esperança tinha saído bem diferente dos seus pais. Era o oposto!
Desde cedo sobressaia-se o medo como mensagem primeira da sua personalidade. Evitava sair à noite, ante os receios que o abraçavam: temor de vivos, pavor de mortos.
Todavia, nessa noite _dia dedicado a todos os santos_ resolveu dar vazão aos seus instintos e caminhou de bar em bar, chegando à Sibéria, à Coréia, ao Três Estrelas e em outros lupanares do Boca Negra. Já preenchido do conhaque com Cocal, eis que ousou piscar para a moça de vermelho, num dos bancos que circundavam a mesa, boca rubra, pintada com o “encarnado sofreguidão” e a tirou para dançar, rodopiando pelo salão do Expedito.
E dançou, dançou, mas dançou tanto que quase esquecia do motivo principal que o fez fugir da toca no rumo das várias instituições que antigamente eram chamadas de “Casa de Tolerância”, que os vulgares alcunhavam de Zona.
Até que, por conta do atrevimento da menina de vermelho, tão manhosa e rebolativa, deu-se por vencido e gastou parte das suas economias com os breves _não mais que onze minutos_ momentos vivenciados na luxúria, exercitada com a maestria daquela tresloucada fêmea, mulher inteligente que, com habilidade exigiu um acréscimo nos sagrados honorários, pelos relevantes serviços realizados. E Salve Lindo Pendão da Esperança, tão satisfeito e embriagado, aquiesceu feliz e encantado. Pagou e prometeu voltar.
Quando se retirava do bordel um temporal se avizinhava. Trovões e relâmpagos ou estremeciam ou acendiam o céu desta fronteira. Um aguaceiro prometia!
Salve Lindo, olhando ao derredor foi saindo devagar. Já se desconjurava pelo gasto, acima do que a prudência recomendava, lamento tardio. E deixando o local um medo foi entronizado no seu cérebro. Noite escura, somente acesa pelos relâmpagos que desciam do alto. Percorreu alguns passos e chegou à Avenida Quinze de Novembro, já sem luz nos postes. E até o porto uns 600 metros o separavam do motor e do batelão aonde estava embarcado. Ele lembrava: já era dia de finados!
E um medo era ensaiado a cada passo que percorria no rumo da composição fluvial, seu destino. Passou pela igrejinha e pela Praça Dr. Mário Corrêa. Vivente algum na avenida. Um arrepio percorreu seu espinhaço, aninhando-se no fim da coluna vertebral. Lembrou-se da morte do padrinho, em cuja missa de corpo presente assistira tão choroso.
¬_E se o espírito do Padrinho me aparecer agora? Meu Deus, meu Deus! não permita esse acinte contra a minha pessoa.
E correu numa velocidade que faria inveja aos atletas do filme “Carruagem de Fogo”.
Ninguém sabia, mas um boliviano tão medroso quanto Salve Lindo Pendão, encostando na beira do rio Mamoré a sua canoa movida a motor de rabeta, desligado bem antes de encostar, após limpar o terreno com a sua aguda visão noturna, subia do barranco com um contrabando de bebidas nas costas. Também tinha medo da Policia do capitão Alípio e das almas penadas “brasileñas”, sabidamente irreverentes. Ele, o boliviano, já subia a tal avenida, também com seus receios expostos na fronte franzida.
Um não tinha visto o outro, mas o pavor os envolvia e uma tensão os abraçava de forma intensa. Salve Lindo Pendão descia a rampa da estátua do Getulio Vargas, no mesmo instante em que o boliviano subia a base do logradouro, esbaforido, amedrontado, agarrando o saco com os produtos clandestinos com os quais ingressara no território nacional. Salve Lindo Pendão da Esperança, ante a escuridão, não vê uma lata vazia de querosene e a chuta, sem querer, com tal força que o faz sentir dores no dedão do pé. Ouve-se uma voz, num “portunhol” bem ruim.
¬_¿Quién anda ahí? O boliviano escuta a própria entonação.
_É a PQP! Responde, bastante amedrontado, o Salve Lindo Pendão da Esperança, num fio de lamento, que soou como trovão nos tímpanos do acovardado boliviano contrabandista,
_Su bendición, my Madre querida, soy tu querido hijo Belarmino Saucedo Alvarenga, yo soy su paso mal con su Don Felípe Salim Tourinho d'Albuquerque, el jefe de la Aduana.
Pelo menos, o Salve Lindo Pendão da Esperança soube que o Chefe da Aduana tinha tido um caso, fora do seu abençoado casamento...
E já na rede, após fechar o mosquiteiro ficou ouvindo a chuva forte que caia, recordando do pavor durante a caminhada e das doces lembranças quando estava nos braços da afogueada “Serpente da Serra”, apelido que lhe caia como uma luva, pois sabia “ziguezagueá”, mercê do contorcionismo com que manejava a sua arte, nas lides do amor.
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