Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Paulo Saldanha

Felício e o fustão



Felício tinha veneração por três Instituições para ele absolutamente Sagradas: Deus, a sua linda família e o Fusca adquirido diretamente da concessionária, após prolongado exercício de intensa e virtuosa poupança.

Aliás, nem sei porque, devo dizer que ele era fanático por um tipo de tecido: o Fustão...

Sempre muito prudente, embora percebesse salário bem acima da média, em função dos cargos elevados que vinha exercendo na financeira regional, guardava parte dos seus vencimentos, com o foco no futuro.

Fervoroso católico, não perdia a missa dominical e cantava os hinos em louvor ao Criador, Jesus e Maria Santíssima.

No sábado, ao levar o veículo para o lava-jato ficava procurando eventuais defeitos na limpeza operada pelo lavador de plantão.

Forte, bonito, alto e disposto, após a cerimônia religiosa do domingo, eis que pegava a família (duas filhas lindas, duas crianças inteligentes, seu orgulho e sua devoção) e iam passear pelas ruas da cidade; paravam no parque, tomavam sorvete ou iam almoçar na residência de algum colega de trabalho ou num restaurante, vibração do momento.

Se o convite os levava ao almoço com algum colega, ali se discutiam os temas emergentes, riam, falavam de futebol, de política, quando, enfim, as gozações sobre os cacoetes de um companheiro de trabalho elevavam o tom das risadas.

Fiz questão de registrar que alguns parágrafos fossem grafados na letra “F”, sim, “F” de Felício, feliz, fabuloso, fraterno, facundo, fandanguista, fascinante, fervoroso, etc. etc. Tive que me valer do HOUAISS para descobrir tantas palavras com “F”, com as quais pudesse definir o meu personagem.

Mas, voltemos ao enredo da crônica para reinserir no texto que, naqueles passeios, enquanto os cenários da urbe se modificavam, em face da sua efervescência e diversidade, aquela família sonhava com o curso superior do marido e pai, que, ela, a família já celebrava, concomitantemente ao que sonhavam como futuro para as filhas.

Aliás, o Fusca já era utilizado para levá-lo até a Universidade, trazê-lo de volta ao recesso do abençoado lar.

Além do vocábulo Fanático outro “F” foi incluído de forma reiterada: FUSCA. Conquista real, não ficcional, vitória digna e necessária para um fidalgo, do porte de Felício, um fidedigno representante da força financeira da firma aonde trabalhava!

Num desses passeios, já estacionando o FUSCA, eis que, ao sair do carro, na calçada passa uma deslumbrante moça, bem arrumada, tão perfumada quanto atraente, posto que todos os olhares masculinos qual imã ela atraia de forma tão natural, haja vista a estonteante beleza que possuía. E Felício, esquecendo-se que deveria abrir a porta do automóvel para que a linda esposa pudesse sair, secundada pelas filhas, ficou parado no desfilar daquela“coisa mais linda, Mais cheia de graça”. Sim, “é ela menina, que vem e que passa. Num doce balanço, a caminho do mar”. Não, não era a garota de Ipanema, mas, na verdade, muito mais charmosa e rebolativa...

E Felício, sem retirar os olhos, mecanicamente abre a porta do Volkswagen‎, e passa a ser observado pela mulher e filhas, sem se lembrar que cometia um acinte contra a família, ali, temporariamente, esquecida do seu cuidado, proteção e zelo.

E alguns segundos de silêncio foram ouvidos, até que...

–Muito bem, muito bonito, seu Felício! E palmas foram ouvidas! Bonita a moça, não é? Parabéns, senhor Felício, o senhor continua com bom gosto...

–Nega, você não vai acreditar, mas ao ver o tecido que aquela garota usava, não é que decidi comprar um fustão idêntico para você fazer um vestido parecido? Disse o Felício, meio sem jeito, tentando explicar o inexplicável.

–Me engana, Felício, que eu gosto!

E ela, a inteligente e sábia esposa, pegou as filhas e, sorrindo, balançando a cabeça, caminhou em direção a sua casa.

E Felício, antes de subir para o seu lar, enveredou no rumo do supermercado existente ali na Rua 9 e foi fazer compras de artigos que nem necessitava, reclamando dos preços e da baixa qualidade dos produtos, que, nem de longe seriam comparáveis ao tecido prometido e que precisava comprar, compromisso inarredável assumido minutos antes, apenas porque era vidrado nos fustões, lembranças de uma época em que eram vendidos através das saudosas Lojas Pernambucanas, numa delas instaladas ao lado do banco, seu então empregador.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Crônicas Guajaramirenses - O poder do m da palma da mão

Crônicas Guajaramirenses - O poder do m da palma da mão

O M que lembra a palavra Mãe é o mesmo M que, conforme o Cantador nos ensina: é onde na palma de nossa mão principia o nome Maria.M que se une a ou

Crônicas Guajaramirenses - Olha pro céu, minha gente!

Crônicas Guajaramirenses - Olha pro céu, minha gente!

Azul, o nosso céu é sempre azul... Diz uma estrofe do Hino de Rondônia. Será?Bem antes do nosso “Sob Os Céus de Rondônia”, tentaram nos ensinar que:

Crônicas guajaramirenses - Por quê?

Crônicas guajaramirenses - Por quê?

Por quê os prédios públicos são tratados pelos homens e mulheres do meu tempo com tamanha indolência? Preguiça, ou será má vontade?Por quê o edifíc

Crônicas Guajaramirenses - As águas negras e as águas barrentas

Crônicas Guajaramirenses - As águas negras e as águas barrentas

Sempre me comovo ao observar o encontro das águas, que, no caso rondoniense, são os beijos gelados entre os rios Guaporé e Mamoré e deste com o rio

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)