Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Paulo Saldanha

Na Igrejinha


         A Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, foi entregue à população de então pelo meu saudoso tio-avô, o Coronel Paulo Cordeiro da Cruz Saldanha, possivelmente em 1926. Hoje carinhosamente denominada “Igrejinha”, é uma preciosidade, uma relíquia.

Para nós guajaramirenses, que procuramos conhecer a sua história, ela parece ser ainda hoje o coração pulsante de seu idealizador e ampliador, Dom Francisco Xavier Rey, primeiro bispo prelado da atual Diocese de Guajará-Mirim, cuja jurisdição eclesial se estende até ao Alto Guaporé, lá na divisa com o Estado de Mato Grosso.

         A sua inauguração, não mais como Capela, mas como pequeno santuário, segundo contam os mais antigos, foi um acontecimento rico de momentos de alegria e muita emoção, desde a celebração da Missa Solene ritualisticamente conduzida, até a entusiástica participação de autoridades em oratórias próprias nesses eventos.

         Para a época, a visão era faustosa! A gente de fé via com orgulho que a antiga capelinha crescera, agigantara-se, se tornara de fato uma igreja, com adro, coro e sinos, sem falar da torre e do transepto que lhe davam contornos definitivos de um templo católico.

         Nesse dia houve até quermesse – festa ao ar livre – muito comum em povoados da Amazônia e teve de tudo: pato no tucupi, espetinhos de churrasco. Galinha assada com farofa, pasteis, saltenhas, bolos e doces, aluá e refrescos artesanais. Até mesmo a “chicha morada” foi oferecida por damas naturais da vizinha Bolívia, já radicadas no lugar.

         No cotidiano da Igreja, devido à seriedade de Dom Rey, cioso de seu ministério pastoral e da formação de seus auxiliares, deram-se casos interessantes. Eis o primeiro deles: alguém chegava para pedir Missa votiva, de ação de graças ou pela segurança do falecido no Além, dizendo:

         – Quero marcar Missa de lembrança. Como faço... e quanto devo pagar?

         E o sacristão, circunspecto e competente, avisava:

         – Se for de pessoa morrida em tempo recente, a encomendação pode ser feita dentro dos conformes da Liturgia, como manda o regulamento canônico... Mas, se for reza para gente do passado, morrida no “distancial” de muitos anos, o pedido deve ser feito de corpo presente, com o testemunho de, pelo menos, um parente vivo! A espórtula[1] é espontânea, a partir de 2$000.dois mil réis (?). (o grifo me pertence)

            Outro fato tragicômico aconteceu logo após a ampliação da Capela, os sinos foram implantados e o côro instalado, com seus cantores integrantes escolhidos e treinados, tão logo o órgão ficou disponível, quando uma celebração de Missa foi anunciada.

Dom Reysempre separava as crianças dos adultos; todavia, uma mulher de origem boliviana resolveu ficar junto das crianças, na lateral direita, de quem entra naquele espaço, que simboliza o lado direito da Cruz do Cristo. Ela parecia doente; tinha um rosto contrafeito e se mexia, se abanava, parecia sentir grandes dores.

Fora convidada a transferir-se para o lugar dos adultos e ela nada! Mantinha-se irredutível! Quando ia começar a celebração, eis que, gritando de dor, vai levantando a perna, –por baixo não devia ter “calçola”...  naquele tempo as sensuais calcinhas não eram produzidas– e, pulando por cima da cabeça dos meninos e meninas, por sobre elas vai derrubando aquela melequeira toda, gritando ARREDA! ARREDA! decorrente de uma disenteria que lhe vinha causando um desconforto e que a fez derramar todo aquele fétido produto nas costas e nas cabeças das crianças que abriram o berreiro.

No caminho, por onde ela passava, um rastro amarelado escuro a denunciava, o que vigorosos sons que expelia e o mau cheiro já confirmavam. Ela correu para o lado e se agachou distante uns 30 metros da nave, por trás de uns bambus, deixando apenas a cabeça à mostra...

Até Dom Rey, entre surpreso, contrariado e raivoso, acabou rindo e suspendeu o inicio da Santa Missa enquanto a Igreja e os bancos fossem limpos e as crianças devidamente asseadas.

Um tipo gozador e sarcástico, ao lado do famoso Capitão Alípio, do alto da sua sabedoria, exclamou: “O mel desceu, mas o bagaço ficou!”

Cena hilária! Alguém daria dinheiro para não perder aquele momento, visando a documentá-lo num texto. Escrevo as últimas linhas rindoàs escâncaras desse episódio, creio acontecido lá por voltas de 1938 ou 1939. Eu nem pensava em nascer. Mas que, para constar, pedindo desculpas, o registrei.



[1] Espórtulassão os valores cobrados pela Igreja quando esta ministra alguns Sacramentos (Batismo, Crisma e Matrimônio), especialmente donativos. (Fonte www.cancaonova.com).

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Crônicas Guajaramirenses - O poder do m da palma da mão

Crônicas Guajaramirenses - O poder do m da palma da mão

O M que lembra a palavra Mãe é o mesmo M que, conforme o Cantador nos ensina: é onde na palma de nossa mão principia o nome Maria.M que se une a ou

Crônicas Guajaramirenses - Olha pro céu, minha gente!

Crônicas Guajaramirenses - Olha pro céu, minha gente!

Azul, o nosso céu é sempre azul... Diz uma estrofe do Hino de Rondônia. Será?Bem antes do nosso “Sob Os Céus de Rondônia”, tentaram nos ensinar que:

Crônicas guajaramirenses - Por quê?

Crônicas guajaramirenses - Por quê?

Por quê os prédios públicos são tratados pelos homens e mulheres do meu tempo com tamanha indolência? Preguiça, ou será má vontade?Por quê o edifíc

Crônicas Guajaramirenses - As águas negras e as águas barrentas

Crônicas Guajaramirenses - As águas negras e as águas barrentas

Sempre me comovo ao observar o encontro das águas, que, no caso rondoniense, são os beijos gelados entre os rios Guaporé e Mamoré e deste com o rio

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)