Sábado, 16 de abril de 2016 - 09h33
1972, um ano para esquecer! Ponto final de uma história de amor entre um povo abandonado e sua amada.
No dia anterior, ao deixar a capital de Rondônia na máquina 18, de sua predileção, ele acelerou cadenciando o equipamento, pois a segurança obrigava-o a transitar pelo Triângulo portovelhense em marcha lenta para depois fazê-lo mais velozmente, após o que, em velocidade de “cruzeiro”, leva-a a atingir, se muito, os 25 Km por hora.
Mal sabia ele que a sorte de uma população estava selada: mais solidão, mais isolamento. Quando manejou o trem nem desconfiava da triste sina que o aguardaria no dia seguinte quando fizesse desembarcar as dezenas e dezenas de pessoas que naquela noite dormiriam no Abunã, entregando-as 24 horas depois da partida bem na orla do caudaloso rio Mamoré.
É que o maquinista Januário Sena* estava escalado para aquela viagem. Como o cerimonial exigia, vindo lá a composição desde a Capital, já no Km 18 - na ponte do Igarapé Bananeiras -, ele, peito “tufado”, emoção correndo à solta em velocidade maior do que aquela da máquina que liderava, ergueu a mão e puxou a corda escura pelo uso e pelo tempo, disparando o apito; e, ansioso, pensava na sua mãe, rezadeira e benzedeira das boas, parteira das melhores.
Como se fizesse parte de um show, Mãe Balbina, cabelos brancos, rosto com poucas rugas, esperava na janela da casinha ao lado da ferrovia, feita de taipa coberta com palha de ouricuri, o filho tão garboso. Este, ao passar, sorriso largo no rosto, dava-lhe um adeusinho enquanto diminuía à marcha para “atracar” minutos depois na gare, na estação apinhada de gente.
Pessoas e cargas desembarcadas, dirigiu-se ao Triângulo guajaramirense para manobrar o equipamento líder e os vagões para serem limpos, deixando-os em posição de retorno para a viagem de volta, no dia posterior. Abasteceu-a do líquido universal, agradecendo a mão dadivosa da caixa d’água preta, quase insolente, mas orgulhosa da função que vinha cumprindo há décadas, desde 1912.
Outro maquinista assumiria o comando da nave, enquanto cumpriria o abençoado rito de descanso ao lado da sua veneranda e respeitabilíssima mãezinha.
Às 17 horas, já em seu lar, enquanto sorvia um café da hora, ouviu o apito das duas máquinas a vapor disponíveis estacionadas no pátio, uma delas aquela que trouxera com abnegada devoção.
E arrepiou-se todo! Morreu alguém da ferrovia? – questionou-se.
Pegou a bicicleta e retornou à estação. E a cena o enterneceu! Pessoas do quadro da empresa choravam e se abraçavam. Familiares dos funcionários tremiam e, incrédulos que estavam, repassaram para Januário a infeliz notícia: Brasília tinha decidido encerrar as atividades da Ferrovia de Deus, a Mãe extremada do Território, que deu vida a Porto Velho e a Guajará-Mirim e tantas outras filhas. E naquele fatídico 10 de julho de 1972 ele se comoveu tanto que chorou. Desolado, verteu nas lágrimas a revolta dos que se sentiam traídos, vilipendiados e, agora sem chão, inseguros e desnorteados.
A partir daí, Januário, com 48 anos, separado da mulher, sem filhos, nunca mais foi o mesmo. Lágrimas já não rolavam mais pelo seu rosto, porém seu peito petrificou. Seu sorriso, antes tão amplo, enrugou; já não podia mais alegrar-se. A ferrovia era sua vida, parte de sua família e seu encanto. A alegria de antes transformou-se em sentimento de perda irreparável. Trancou a vida no quarto, pouco se alimentava, e fumava e fumava, tossia e tossia. Descobriu-se tísico, meses depois.
Morreu de desgosto! Tempos mais tarde sua mãe também adoeceu, desvanecida com a morte do filho, seu orgulho e sua esperança, seu alento e sua estrela guia, razão do seu viver.
Morte que foi prematuramente anunciada pelo apito fúnebre naquela tarde em face do desalento que expressou, e que depois se soube ter acontecido no mesmo horário tanto na cidade de Porto Velho como aqui em Guajará-Mirim. O que antes representava um som harmônico, trinar gostoso de ouvir, abençoado cantar, e que nunca mais seria ouvido nestas terras do poente, sinalizou o último suspiro das locomotivas, que desde então se emudeceram.
Que pena! É de dar dó ver tantas pessoas sonhando em vão com o retorno do apito do trem da ferrovia da integração, que proporcionava elo econômico, social e afetivo como a capital portovelhense.
Sentimento de vazio que as BR-425 e 364 não conseguiram preencher!
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