Segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012 - 13h04
No linguajar amazônico beradeiro é aquele que vive na beira do rio. É onde moro, procurando a comunhão com a natureza, a quem aprendi a respeitar e reverenciar.
Acabei vendo e ouvindo tantas histórias, que podem valer a pena repassar, eis que somente os predestinados viventes das barrancas dos rios e igarapés podem testemunhar.
Por exemplo, vi a surra que uma cobra verde (nem tão grande) levou, de quatro botos tucuxis. Ali, na lateral do encontro de dois rios a tal serpente apanhava, ora de um, ora de outro sendo elevada a cerca de 4 metros de altura, a partir da força descomunal que um boto carrega na cauda. Quando a cobra caia na água outra vez era sacudida, erguida céu acima. Não sei se escapou, mas, se isto aconteceu, deve estar tonta e siguezagueando assustada por ai, até hoje.
O certo é que os botos pelo mesmo processo –surra com o rabo–costumam matar os poraquês, aquelas enguias elétricas, que podem matar um homem mediante a descarga mortífera.
Vi um boi, já bem cansado, cercado por botos vermelhos, aqueles conhecidos como cor-de-rosa, que atuavam como a indicar a margem do rio, desejando encaminhar o ruminante para a vida. Não para a morte.
Um peruano resolveu atravessar, certa feita, a distância que o separava da outra margem e foi nadando, nadando quando, de repente, um bando de botos também o cercou, parecendo desejar salvá-lo, sem que o tocassem, todavia. É o que indicavam as ações, as quais me atrevo a chamar de protetoras, salvadoras mesmo. Aqueles donos do trecho do rio desejavam conduzir o estrangeiro para um lugar seguro. Até que ele alcançou a praia ali na frente. E os tucuxis retornaram para o meio do rio.
Numa outra ocasião, enquanto lia um livro bem na barranca do rio, observei que uma quantidade enorme de botos fazia uma algazarra próxima de onde eu estava. Caminhei na direção e, em condições de não ser visto, contei sete botos, me parecendo crer que outro estaria encalhado, impossibilitado de sair do trecho, preso em razão da pouca lâmina de água. Recomendei que dois homens pegassem a canoa e fossem liberar o mamífero fluvial, que se achava em dificuldade. Ledo engano! Ingênuo, fui alertado, depois, pelos companheiros de que, na verdade, o boto (fêmea) estava se resguardando para o escolhido, posto estar sendo quase que violentamente assediada pelos machões que sabiam estar ela no cio.
Sem querer representei o ser inconveniente que empata a possibilidade de uma cena de amor entre dois seres.
Em data que não posso precisar, embora eu me encontrasse fora do acontecido, me foi repassada a informação de que um Tamanduá bandeira, vinha do lado boliviano, nadando em direção ao território brasileiro. Resolveu acampar nos barrancos nacionais, ainda que não tenha apresentado o passaporte, nem mesmo a sua tarjeta de identidad.
Abusado, como alguns outros seres bem superiores, vi que não se valeu da generosidade brasileira e nem buscou o nosso SUS, nem colégios e transporte para os seus filhos... Mas se fartou com as formiguinhas verde-amarelas do nosso pedaço de chão.
Agora pescaria sem custos para mim, aconteceu no ano de 2001 quando um boto deu uma rabada numa infeliz pirapitinga (depois vimos que pesava 11 K), jogada em cima de uma colcha de capim presa numa tronqueira. Como ficara de lado, não conseguia-por mais que tentasse– sair da incômoda situação. O Auxiliar, valendo-se de uma canoa e um remo a recolheu, tão viva quanto revoltada, desejando retomar a sua vida como lhe ensinara a natureza. Apanhada bem firmemente se transformou em suculenta caldeirada, cuja captura se deu a custo zero.
Também outros me transferiram suas experiências com os rios e suas margens. Algumas nem tanto reais como as narrativas anteriormente citadas. Exemplo disso foi o senhor Fernando, hoje morador, em Porto Velho, no bairro da Arigolândia.
–Paulo, disse-me resolutamente, você sabe que deixei de ser seringueiro no dia em que deixei de usar botas?
–Desconheço esse detalhe, seu Fernando, e por quê? Fiz-lhe a pergunta, naquela manhã, já ensolarada, bem cedo, lá por volta das 06 H e 30 m.
–Você sabe que seringueiro acorda cedo, em torno das 2 horas da madrugada. E inquieto por ter perdido a hora, desci da rede e fui logo calçando a minha bota, colocada embaixo e, meio sonolento, verifiquei que o pé engolia o cano do calçado com avidez. Ora, mas o cano da bota não é assim tão comprido? Questionei com meus botões. Foi ai que peguei a lanterna e foquei. Paulo de Deus, eu estava calçando a boca de uma sucuri de mais de 20 metros...
–Mas, seu Fernando, e o pior é que acredito nessa sua “verdade”. Até imagino a docilidade da sucuri ao se ver invadida, permanecendo calminha enquanto um pé era introduzido goela abaixo. Cobra tem goela?
–Pois é, amigo Paulo, por isso e por outras deixei de usar botas e nunca mais desejei continuar sendo seringueiro. Ele nem respondeu se sucuri tem goela!
Acontece que o seu Fernando, apenas se vingou das piedosas mentiras que lhe contei bem sério no dia anterior.
Foram ingênuas histórias de um verdadeiro beradeiro, que se inspirava nas narrativas do saudoso doutor Demerval, médico dos bons, de tão excêntricos contos, mas legítimas recordações, decorrentes dos devaneios daquele mesmo profissional, cujo pai, segundo ele, havia descoberto a fórmula de fazer o cruzamento da jaqueira com a seringueira, colhendo tempos depois as pélas de borracha, como se fruto grande e pesado fosse, eliminando o doloroso processo de elaboração daquele produto destinado à Indústria de pneumáticos.
O beradeiro tem histórias (verídicas ou não) para contar. Até eu, desculpem-me, quem diria, já tenho as minhas...
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