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Paulo Saldanha

O Durango que não chegou a Sabará


                Era novato em Guaporé, apesar de nascido nas barrancas do Sagrado Vale. Teve a adolescência e a juventude escoladas nos ares cariocas, onde angariou o jeito galhofeiro de tocar a vida.

                Como “Sabará” não pegou, passou a ser para os íntimos “Durango”, alcunha que lhe deu o saudoso amigo William Tanous Bouchabki, inspirado em certo herói de histórias em quadrinhos.

                Durango Kid,     para quem viveu os anos 60 reagia como Robin Hood. Este tirava dos ricos e presenteava os pobres. Sua indumentária era negra, mas cobria o rosto com um lenço escuro.

O Durango que não chegou a Sabará - Gente de Opinião

'Esperança – 50 anos depois' – Uma resenha ou viagem no tempo?



Prosa que desemboca em saudade 
 

                O Durango, que não chegou a Sabará, foi bancário, do tempo em que Banco não tinha cartão de crédito nem caixa eletrônico, mas fomentava negócios e impulsionava desenvolvimento. Os gerentes tinham poder decisório e homens (e não máquinas) atendiam pessoas, gente, seres humanos. Em estudos tardios, conseguiu formar-se advogado, profissão que nunca exerceu, segundo ele, por não acreditar em lobisomem.

                Num sábado cinzento e chuvoso, daqueles com cara de dia de enterro, no apagar das luzes da jornada de trabalho, foi surpreendido com um “abono” fora de hora, coisa de um mês de salário, benesse que certa empresa dera a todos os funcionários, naquele momento indizível de rara felicidade por um negócio lucrativo bem sucedido.

                Levando tamanha afronta no frontispício, dinheiro caído de um céu nunca sonhado, Durango resolveu fazer uma manifestação pessoal verborrágica em desagravo da pobreza no Brasil.

                Sem um cavalo para chamar de seu, o nosso pretensioso neo-orador de plantão surgiu de forma retumbante, sem o Raider ou uma imitação do animal do legendário personagem das revistas em quadrinho e dos filmes americanos. Resolveu vestir-se de “bebinho”, fantasia que seria imperiosa, pois desejava desabafar.

 E o espírito do Robin Hood, misturado com o de Durango Kid nele baixou, e, sob uma chuva torrencial, pouco afeito ao hábito da embriaguez, começou o seu itinerário no Bar Imperial, do Manuel Manussakis, bebendo uns tragos aqui, outros acolá, com uma parada estratégica na Padaria do Baltasar, culminando no bar de Antonio Rodrigues, bem abastecido de doses de conhaque macieira, encorpadas com sucupira dormideira de sereno, de modo a manter em ordem a pressão do gogó.

                Dentro dos conformes alcoólicos, estabeleceu, fixou, postou a sua desgovernada pessoa justamente no cruzamento das avenidas Leopoldo de Matos e Costa Marques, e proferiu a maior oratória já transitada naquelas paragens, como ninguém ousara fazer.

                De “cara cheia”, voz embargada pelo elevado teor de álcool ingerido, atropelando o idioma pátrio propalou, para os quatro cantos de sua Guajará, que não havia mais pobres no Brasil... que o Governo, por decreto daquele dia, banira para sempre a indigência em terras brasileiras.

                Apurando a concha do ouvido, não ouviu aplausos, vaias, nem mesmo um solitário “Vôte!” A plateia, escondida e quieta, certamente estava recolhida em segurança contra os despautérios da natureza.

                E ia de “ruibarbosismo” solto quando, de repente, sem mais aquela, o discurso foi solapado. Ou será que, mediante a violenta emoção que as suas palavras produziam ao derredor de sua própria figura, teria ele desmaiado? Ou, inebriado e comovido com o que falava e só ele mesmo ouvia?

                No dia seguinte, de cara limpa, tomando mingau na banca de Dona Irma, no interior do Mercado Municipal, soube por amigos que a “veia discursória” fora cortada na raiz por Antonio Simon Perez, morador na esquina contrária, espanhol dos bons e de grata lembrança, velho amigo de seu pai.

                O desfecho foi assim: Dom Perez, diante da cena etílico-aquática, em jeito “bascoso” _típico dos habitantes do Norte da Espanha– foi taxativo:

                 – Jesus, recolha o menino... Vamos lhe dar um banho, fazê-lo beber um café daqueles e depois reforçá-lo com canja de galinha preta!

                O banho foi dado bem frio, após o que sorveu um café dos mais fortes... e a canja, muito bem tomada foi ingerida aos solavancos.

                No concernente à pobreza e à indigência, elas ainda aí estão, desafiando a engenhosidade humana. Mas isto é coisa de políticos, economistas e sociólogos, ou de especialistas estratégicos em gestões governamentais.

                Todavia, fica para a posteridade o pileque que levou um Durango, que nem chegou a Sabará, a extravasar uma alegria por conta de um inesperado ganho extra que acabou transformando-o num Robin Hood de araque, num dia, nesta fronteira de homens e mulheres de boa vontade.

               

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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