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Paulo Saldanha

O Mapinguary e uma nova história


 Quando me lembro das lendas que envolvem o Mapinguary sempre sou remetido às histórias que meu Pai recolhia ou nas pascanas ou nas composições fluviais que liderava, como comandante de barco, chefe do tráfego ou superintendente, enquanto elas, as embarcações, paradas, tinham no conserto, no reparo do motor, ou da hélice, o motivo para a atracação da comitiva na orla de um barranco.

E ai, já de volta, repassava para a família as histórias que lhe chegavam ao conhecimento, como aquela do velho Ponciano, um matogrossense de Cáceres, que nem cheguei a conhecer.

E o meu Pai, com aquela alma sonhadora, não perdia a oportunidade de ficar no centro dessas narrativas, pois se deleitava, como se fora um deslumbramento, já que valorizava a natureza bravia que se locomovia nas entranhas das histórias que, se não podem ser confirmadas, pelo menos acabam divertindo.

E o velho Ponciano passou a contar, pedindo silêncio depois de uma frutificadora pescaria noturna, após a lua cheia ter surgido no céu, perante a platéia constituída pela equipe de bordo, saboreando um caldo bem quente, preparado pelo Mestre Cuca, tanto que o fazia agredir a etiqueta, produzindo aquele barulho indiscreto com os “beiços”. Descrição que faço abaixo, quando tentei melhorar o português como que foi ela originalmente feita:

“Em 1925 nas fraldas da Serra dos Parecis, entre Vila Bela e o rio Cabixi, eu e um colega saímos do acampamento para abrir um varadouro, uma trilha, visando a retirada de postes e madeira para o nosso patrão.

Ocorre, que o companheiro, dias depois, teve que viajar, deixando-me sozinho naquele grotão. Medo não sentia, mas, de vez em quando, me assustava com os esturros das onças ali tão próximas do Tapiri devidamente improvisado, onde nós dormíamos, porém num jirau, numa determinada altura, para maior segurança.

E temperando a goela continuou sua narração. Lá pelas tantas, munido apenas de um machado amolado e um terçado na bainha caminhei mata a dentro, não mais que uns dois quilômetros. Ao atravessar um igarapé seco, observei uns rastros diferentes, bastante grandes. Desconfiado, mas assustado, olhei ao derredor e nada vi. Ocorre que aquelas marcas deixadas na terra eram descomunais. Serão pés humanos? Questionei. Após pigarrear, Ponciano deu sequência ao seu relato.

Continuei a minha varação, a pé, até que subi um pequeno morro e numa brecha aberta na mata, como se fosse uma campina, vi aquela massa em pé, com uma altura de uns dois metros, peluda, com uma cabeça enorme enterrada sobre os ombros, me encarando com uma carranca que jamais pude esquecer.

Um arrepio tomou conta de mim, disse o Ponciano. Aquela figura descomunal, feia, catinguenta, ali à minha frente, a uns 20 metros de distância, me olhando com cara de péssimo amigo. Tentei fugir, mas as pernas não permitiam. Fui possuído por um medo indescritível. Virei estátua, atemorizado diante daquela imagem horrível.

Não posso precisar, porém creio que ficamos uns 5 minutos nos olhando, um para o outro. E ante a ausência de espingarda, pensei na morte. Só tinha um machado bem amolado e um terçado, para a minha defesa, assim qualquer movimento em falso poderia ser entendido como um desafio, verdadeiro desacato àquela fera. Quase me borrei de medo!

Meu santo protetor, São Benedito, foi lembrado naquele instante. Aquele bicho deu um gemido, voltou-me as costas e embrenhou-se na floresta. É possível que tenha me achado uma pessoa tão mesquinha, insignificante, sem importância, enfim, reles, um ser muito pequeno que, para minha tranqüilidade pessoal, não me fez qualquer mal.

Um fedor pestilento ficou naquele ambiente!

Voltei para o Tapiri, meditando que aquela configuração fedorenta, enorme, cabeluda, cabeça grande, quase parda, poderia ter-me matado! Valeria à pena, eu continuar sozinho naqueles ermos? Ponciano conjecturava... Estava arrasado.

Depois desse encontro, só trabalhava com a minha Espingarda 12, explicou ele. E seguiu falando.

Vi umas fotografias dos gorilas. Mas, aquele bicho andava mais ereto, talvez fosse muito mais musculoso. A forma seria de um gigante humano, bastante feio, um bicho atemorizador, com a cor de um macaco prego. Porém, insisto, o bicho era muito fedorento.

Dias depois o meu colega retornou a quem contei essa experiência quase trágica. Depois, concluímos juntos o nosso trabalho –a abertura da trilha para a retirada das madeiras e dos postes– mas o executamos tensos e amedrontados.

De volta ao acampamento principal, finalizou o Ponciano, relatei a tal experiência e todos foram unânimes em dar o nome da fera: o tal do Mapinguary”.

Ponciano, segundo meu pai, terminou a história, não tendo passado despercebida a tensão que carregava na entonação da sua voz. Ele estava bastante agitado com aquelas recordações.

O certo, todavia, é que há diversas narrativas sobre o Mapinguary, porém não existem provas a respeito de sua existência, a não ser o registro de um cientista que atribui à lenda a possibilidade de se tratar de uma preguiça gigante – cujos fósseis foram encontrados– já exterminada da face do planeta.

Hoje é na tradição indígena e dos não índios, apenas uma narração produto da imaginação humana, visando a amedrontar crianças rebeldes a quem se poderá entregar ao bicho, se não se submeter à disciplina do núcleo onde vive.

Afinal, Ponciano falou uma verdade? Existe ou não existe o Mapinguary?

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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