Quarta-feira, 15 de julho de 2009 - 22h26
Crepúsculo. Momento de silêncio. Em minha cabeça, onde já se vislumbram cabelos encanecidos que acredito abençoados e sinalizadores de novo ciclo na existência, sentimentos passeiam livres, aguçando minha sensibilidade que voa solta no tempo. Dentre eles, impera a saudade. Recordação de pessoas e fatos percebidos por meus sentidos e mantidos presos em uma moldura especial nos recônditos de minha mente, em toda a sua plenitude. Assim, permanecem em meu coração.
Vejo-me menino, junto a outros, brincando no porto da cidade; saltando de pelas em pelas de borracha, que matizavam de negro aquele chão. O que representava brinquedo, também refletia o resultado de um árduo e nobre trabalho, gerador de empregos, faturamento de produção e renda, movimentando a economia local e de alhures.
Um sorriso tímido, quase imperceptível, surge quando me vem à lembrança a movimentação ocasionada pelas partidas e chegadas do trem. Às nove e às catorze horas, respectivamente. Retratado tenho a efervescência da estação. Num vai e vem, pessoas vendiam: croquetes, bolos de macaxeira, abacaxi, pirulitos, picolés, tapiocas (sem esquecer a figura do Paraguay, tão desengonçado com seus pirulitos em forma de cone ou seriam puxa-puxas presos numa roda de madeira perfurada); um verdadeiro comércio de múltiplas coisas, onde todos buscavam assegurar um rendimento que lhes propiciasse condições de ter comida em suas mesas, e a mantença familiar. Carroças puxadas por bois ou cavalos garantiam o transporte das mercadorias, e assim também seus proprietários tinham seu ganha pão. Tudo ocorria em tremendo alvoroço. Mas era um espetáculo ao ar livre, num palco armado pelo cotidiano, sem ter havido ensaios.
Quase gargalhei com a imagem estampada por conta da aventura que representava colar os nossos ouvidos ao trilho, para tentar escutar a aproximação do trem, que tardava a apitar. E o resfolegar da máquina chegando devagar fazia o coração infantil bater acelerado em função das noticias e das novidades que aquela composição trazia.
Pensamentos me perseguem e me envolvem em nostalgia, ao recordar as catraias empurradas pelos 10/12, salvo engano, Penta ou Arquimedes, motores possantes, mas que desencantavam a nós meninos desejosos de maior velocidade. Éramos uns temerários apressadinhos e não observávamos que o tempo, tão implacável, já navegava célere em nosso desfavor, e sem retorno. As idas e vindas das catraias eram uma integração bi-nacional, e nos envolviam num sistema de trocas que permitiam vultosos negócios para os empresários daquela geração. Famílias desta banda se relacionavam com as famílias de la banda, numa harmoniosa e saudável convivência que nos enaltecia enquanto vizinhos. Afinal, o rio Mamoré, não nos separa, mas nos une em direção ao progresso e a integração. Isso é solidariedade.
E os sinos da Igrejinha! É doce lembrar suas batidas, a transmitir avisos à população. Ou nos indicavam as horas ou faziam um convite para a Santa Missa e Novenas, ou, numa expressão de dor, indicava a perda de um morador abnegado, sem distinções de classe, cor, raça ou até de religião. Ah! Sino que segundo Alex Periscinoto, foi o maior veículo de comunicação de massa inventado até hoje. Ah! O sino, consagrado na quadra de Antônio Correa de Oliveira, como Sino, coração da aldeia; coração, sino da gente: um a sentir quando bate; o outro a bater quando sente. Ah! O sino anunciando a hora da Ave Maria!
Célebres procissões! Os andores, a fé inquebrantável dos fiéis, as orações em uníssono que energizavam todo o nosso universo. Pelo menos essas continuam...
Os comícios... Estes atraiam a multidão; sem oferta de brindes, mas exemplos de que a cidadania, o civismo, enfim a participação política empolgava as facções partidárias; tempo dos Aluizistas ou dos Renatistas, ou no popular, dos Cutubas e Peles Curtas.
E os antigos carnavais? Com direito a desfiles de fantasias, com direito a prêmios; os blocos em sua animação, traduzindo alegria, muita alegria, regada a flertes, declarações e reconciliações por conta do império de Orfeu e da descontração emanada do alucinante ritmo das marchinhas, do frevo e dos sambas. Um bloco saia do Helênico e se dirigia ao Guajará Clube, no instante em que outro ali chegava, após ter saído do Cruzeiro ou da Taba Maracajá, hoje Boinas Rajadas. Naquele tempo a lança-perfume não era ainda proibida.
Lembrar é preciso, da competição entre Os Apaches e os Rondombrasas... Conjuntos, hoje chamados bandas, que tornavam os finais de semana e as festas bem mais aprazíveis para todos.
Quem, daquele tempo, se esqueceu do velho Benvindo, com sua carroça vendendo frutas; e o Fernando Bobina, mais recentemente entregando pães e verduras para os seus clientes, que mereciam ouvir suas músicas tocadas a partir de um arranjo, que manejava gerando os sons que brotavam da própria boca?
Dorival Caymmi nos disse certa feita que é doce morrer no mar; nas ondas verdes do mar; e eu digo: é doce viver lembranças tão especiais, concebidas a partir da rica experiência que é nascer, viver, morar e ajudar a construir hoje a sociedade guajaramirense do amanhã. É gostoso sentir saudade de pessoas que já se foram, mas que nos legaram exemplos tão dignificantes de altruísmo, de amor ao próximo, de generosidade, de visão de futuro, de participação, de civismo, de nacionalismo, enfim, de entrega aos mais legítimos interesses locais.
Viajando mentalmente, cheguei a querer transmutar-me em Deus, visando adquirir poderes para manter-me, e a amigos queridos, infinitos; para que todos de meu tempo, ante meu pretensioso poder divinal, jamais partissem para o outro lado da vida, empobrecendo com as precipitadas mudanças o universo regional. Louca e irresponsável pretensão! Um acinte! Uma blasfêmia contra os poderes do Pai Eterno...
Impossibilitado, em face das limitações humanas, eternizo apenas as minhas saudades através das lembranças de um tempo que, confesso, eu vivi, de forma tão descontraída, num período que se vai perdendo em direção à fímbria mais azul que eu enxergo lá no começo do horizonte...
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