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Paulo Saldanha

Senhor Costa, o jovem de 85 anos ou o velho lobo do rio


O Senhor Costa - Costinha para aqueles que já o conhecem há décadas (meu caso) -, apesar da baixa estatura, é um gigante ser humano, descomunal criatura, a serviço do bem, da virtude, da lealdade, da pertinácia e do cumprimento das leis ambientais, inclusive. É pescador profissional.

          Toda vez que o vejo lembro-me do personagem de “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway. Para mim, ele é o sempre jovem do Mar... do Mar...moré.

          Filho de João Cristóforo, grego, com dona Adélia Dourado Cristóforo, boliviana, seu apelido nada tem a ver com o nome de batismo – Constantino Cristóforo. Casado com a senhora Maria Silva.

          Disse-me que age sempre dentro do que lhe é exigido como cidadão, pois sentirá vergonha se for admoestado.

          Mais velho - dezoito anos nos separam do seu e do meu nascimento -, diz do seu orgulho de ser (não foi) afilhado do meu tio-avô, o coronel Saldanha, a quem visitava e ganhava atenção, mimos, balinhas e outros presentes.

         Antes de ser pescador profissional, foi seringueiro ali nos rios Pacaás Novos, (seringalista Conrado Farias, seringal Maloca) e Ouro Preto (Manoel Manussakis, seringais Petrópolis, São Pedro e Macaxeiral), atividade sofrida, insalubre, tediosa, logo desgastante.

         A profissão de pescador deu início com uma canoa, dois remos e um varejão. Com uma poupança feita com essa ocupação pôde comprar um motor 10-12 da marca Archimedes, e prosperou. Sua casa é ali na Praia do Valentin (em frente daquela corredeira que é conhecida como Guajará-Mirim; a outra corredeira, ali na Praia do Acácio, é chamada de Guajará-Açu).

          Seu pai possuía uma venda no médio rio Guaporé nos anos 30 (século XX), quando comercializava de tudo e, algumas vezes, aviava seringueiros que trabalhavam o látex naquele entorno.

          Quando tinha 5 anos, a violenta morte do pai trouxe à família toda uma má sorte de improvisações, perdas físicas e espirituais, a partir de umas facadas que recebeu de um libanês por conta de uma briga estéril em cima de uma discutível dívida contraída.

           Com três irmãos e a família já liderada apenas pela mãe, Adélia, seu grande esteio, com a atenção do padrinho, o Cel. Saldanha e gerente da empresa de navegação, embarcaram todos na “Horta Barbosa”, barco tipo gaiola de ferro movido à lenha (caldeira), com grandes rodas instaladas na popa, e se fixaram em Guajará-Mirim.

            Pasmem! Guajará-Mirim há quase cem anos tinha embarcações desse tipo. Era, na época, a modernidade flutuante. Mas só saía do barranco no período invernoso.

            Foi difícil, mas a matriarca criou todos os filhos dentro dos princípios católicos e de amor à virtude. A humildade e a decência são marcas daquela família! Até que o Costinha, já com 25 anos, se definiu optando pela profissão de pescador, e lá se vão 60 anos... Mas pescar era seu hobby desde os 15.

           Quando começou a pescar a cidade não tinha gelo para vender. Então, vendia a produção recolhida devidamente salgada. Eram surubins, jatuaranas, tambaquis, pirapitingas. Ou se valia dos peixes vivos, guardados em calhapos[1].

             E algumas pérolas dele extraí numa conversação para mim “por demais satisfatória”. E me foi dito:

- Que, numa madrugada, acordou e, descendo da rede, abriu o mosquiteiro para reacender o fogo, quase acabando, quando sem querer pisou na cabeça de uma surucucu de fogo; sem ação, embora sabendo que pisara numa cobra, não sabia qual, permaneceu com o pé no dorso do réptil, com medo de receber uma mordida, até que tomando coragem pegou a lanterna e focou. Arrepiou-se todo, mas continuou esmagando-a mais pesadamente ainda, até que “pegando num arpão pinicou a bicha toda até vê-la estrebuchar-se no chão”. Ainda teve idéia e agradeceu a Deus por não ter sido ofendido como em duas vezes anteriores.

- Nessas vezes anteriores foi picado por uma jararaca e bebeu álcool puro no trajeto de descida do seringal Macaxeiral, do Manoel Manussakis, após o que recebeu competente tratamento durante13 dias no antigo Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (hoje Regional); depois, no sitio Laranjal, próximo a Sete Ilhas, no rio Mamoré, uma baita Surucucu de Fogo o pegou em cima do pé. Ele sozinho assumiu o tratamento e mascou muito fumo, engoliu parte dele e a compressa mastigada colocou na ferida, mais tarde bebeu o fel da paca e espalhou o resto no local do ferimento. Salvou-se!

- Garantiu-me ainda que foi ferrado por arraia e que jamais viu sucuri superior a 7 metros. Mas o velho Serapião já tinha visto “bichas” bem maiores.

- “Paulinho, nasci aqui no barranco do Guaporé e já sou pescador dos mais antigos nos lagos, baías e rios afluentes do Mamoré e jamais vi uma cheia como essa aqui. Já vi muita inundação, mas veramente lhe digo: nenhuma como a deste ano” (2014).

- Adora pescar no rio Pacaás Novos, aprecia o clima reinante na foz desse rio e despreza o da cidade. “Não como nada envenenado”, afirmou ele, dizendo que os produtos químicos colocados na bebida, nas conservas e nos pães só mal produz. Por isso não bebe refrigerante, por exemplo. Mas aprecia um café da hora e o requentado também.

    Quando lhe mostrei que a nossa estrada interna estava intrafegável em mais de 200 metros por conta da cheia, ele me afirmou de forma contundente: “mas essa água toda aí é a saída da ‘Gulosa’”. Para quem não sabe, ‘Gulosa’ é a baía que recebe as águas do Pacaás Novos e está localizada nos limites entre o Hotel Pakaas e a fazenda de minha família.

              E arrematou: “essa Gulosa fazia o velho Serapião, antigo morador do lugar e a valentia em pessoa, ter medo em atravessá-la, porquanto ele me confirmou: tem sucuri da grossura de um barril de diesel, de diâmetro e cumprimento de mais de 13 rifles papo amarelo, além de jacaré com tamanho superior a 6 metros”.

              O sol já se debruçara a oeste e um multicolorido de tons indicava o fim da tarde. Costinha, pedindo licença, foi despedindo-se, pois precisava chegar ainda com o dia no projeto Tanque-Rede, três quilômetros rio acima, para pousar.

               Volte sempre, amigo Costinha! É ótimo papear com você!
 



[1] Espécie de gaiola rústica que ficava dentro d’água amarrada à embarcação e onde se colocava o pescado, que era dessa forma mantido vivo,dentro do rio.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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