Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Paulo Saldanha

Um acidente para lá de esquisito


                    Sempre que necessário aquele avô virtual saia do seu sítio, distante da cidade em mais de 60 Km, dirigindo uma C-10 que tinha sido verde, mais virou cinzenta pelos 42 anos de vida inclemente a serviço da vida rural.

                   Já tinha perdido a carroceria de aço posto ter sido adotada uma de madeira, bem tosca, mas imprescindível aos trabalhos quase escravizantes de uma propriedade agrícola, onde se plantava grãos e frutas, mas desenvolvia uma pecuária de leite.

                   Um dia, no rumo de Guajará esse parente virtual fazia desfilar todo faceiro aquele veículo carcomido pelo tempo, mas que era de uma utilidade tamanha, provada essa afirmação pela quantidade de sacas de farinha, milho,  mandioca, banana, laranja, limão, côco, etc produtos esses que pontificavam na carroceria do “bicho” rodante.

                   Ao lado de seu companheiro de fé, o afilhado Luiz Januário (homenagem a Luis Gonzaga e ao pai daquele), os dois conversavam indolentemente, enquanto ouviam Asa Branca e Assum Preto, pela vigésima vez. O Assum Preto lhes fazia derramar furtivas lágrimas, pois se emocionavam com a tristeza da letra e se comoviam com a intensidade da música. Até que passaram pela Ponte do Salomão.

                   Meu avô, distraído ao chegar ao asfalto, desrespeitando a velocidade ultrapassava os 110 Km por hora, quando, de repente, uns burricos surgiram do acostamento. Nem deu tempo para frear e um barulho ensurdecedor foi ouvido, com direito a quebra do pára-brisa, gritos e impropérios pronunciados e um zoar esquisito, sinalizando um mórbido, mas estridente urrar de dor e de desespero.

                   Uma pancada no olho direito desse avô, deixou-o meio tonto! Mas recompôs o seu sentido de orientação, após fazer ranger os pneus, quando balançou e zigue-zagueou o carro, mantendo-o na esburacada estrada pavimentada. Todavia, com o olho dilatado, nem olhou para a direita onde deveria estar o Luiz Januário, seu afilhado.

                   E um silêncio reinou entre ambos. Com a lateral inchada conseguia enxergar algo diferente no lugar do passageiro. Parecia ter aumentado de tamanho...

                   Fixando-se em si próprio notou que o peito arfava e suas pernas tremiam mediante o susto pavoroso que os surpreendera.

                   Precisava acalmar-se! Também pudera! A pancada foi grande, mas, para seu alívio tinha mantido o domínio do automóvel. Parecia que tinha batido ou num homem ou num animal grande!

         –E se foi num homem? Questionava para si mesmo. Já andei mais de 1 Km... e se matei o homem? Deveria ter prestado ajuda... ponderava esse meu avô de tantas histórias.

                   Naquele tempo, eu assinalo, não existia a legislação de hoje que o obrigaria a dar assistência ao atropelado. Apenas, o valor moral recomendado para casos da espécie justificaria o auxílio e o apoio ao atropelado.

                   Mas, ante as perguntas que se fazia, e sentindo a lancinante dor na lateral do olho direito, bem que o percebia inchado e ensangüentado, fechou-se num mutismo tal que deixou de perquirir o estado em que poderia encontrar-se o seu companheiro de viagem.

                   Com o olho esquerdo viu que o estrago no pára-brisa foi tremendamente enorme. Mesmo assim, sorriu ao lembrar-se de que o bom reflexo e a frieza dos seus sentidos o livraram de danos maiores. E acabou orgulhando-se da habilidade como manejava o volante.

                   Até que, chegando na rotatória, ali na XV de Novembro com a avenida Duque de Caxias tomou coragem e perguntou a Luiz Januário se ele estava bem.

                   Silêncio sepulcral! Ninguém respondeu nada! Por quê?

                   Vai daí que esse meu avô fez um contorcionismo tal e... surpresa!: quem estava sentado no banco do passageiro era o burrico, com um corte na cabeça, parecendo rir do acontecido. O burrico, mesmo com torcicolo, virou-se para o meu parente, desejando agradecer pela vida e pela lição de vida que recolhera–jamais andaria distraído novamente.

                   Enquanto isso, Luiz Januário,deslocando-se no sentido inverso ao da C-10, buscando equilibrar-se, montava outro burrico do grupo daquele outro instalado na boleia da C-10, bastante assustado, porém, o Luizin, de costa para a cabeça do animal, olhava incrédulo para a trazeira do bicho, já quase chegando à ponte do Salomão, procurando entender o que estava fazendo naquele lugar, quando passara por ali, minutos antes, ao lado do também abalado motorista de uma pickup que colidiu violentamente com o muar.

                   O difícil foi retirar o burrico preso no automóvel.

                   Finalmente, o muar que transportava Luiz Januário foi cansando, cansando... e cansou. Foi parando, parando e parou...  O rapaz, saltando do lombo do asno foi brindado com um coice de pesado megatom e caiu com a cara na lama que antecedia o barranco do pequeno riacho que adornava aquele ambiente verdejante.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Crônicas Guajaramirenses - O poder do m da palma da mão

Crônicas Guajaramirenses - O poder do m da palma da mão

O M que lembra a palavra Mãe é o mesmo M que, conforme o Cantador nos ensina: é onde na palma de nossa mão principia o nome Maria.M que se une a ou

Crônicas Guajaramirenses - Olha pro céu, minha gente!

Crônicas Guajaramirenses - Olha pro céu, minha gente!

Azul, o nosso céu é sempre azul... Diz uma estrofe do Hino de Rondônia. Será?Bem antes do nosso “Sob Os Céus de Rondônia”, tentaram nos ensinar que:

Crônicas guajaramirenses - Por quê?

Crônicas guajaramirenses - Por quê?

Por quê os prédios públicos são tratados pelos homens e mulheres do meu tempo com tamanha indolência? Preguiça, ou será má vontade?Por quê o edifíc

Crônicas Guajaramirenses - As águas negras e as águas barrentas

Crônicas Guajaramirenses - As águas negras e as águas barrentas

Sempre me comovo ao observar o encontro das águas, que, no caso rondoniense, são os beijos gelados entre os rios Guaporé e Mamoré e deste com o rio

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)