Segunda-feira, 1 de abril de 2013 - 06h39
A Baia do Meio era tida como assustadora! Muitos correram de lá, arrepiados até nos cabelos dos cotovelos. Uma alma penada rondava os seus barrancos, sem que escolhesse o dia para as suas aparições.
Aliás, alguns chegaram a ver um vulto vestido de branco, sem que definissem o rosto. Às vezes um perfume reinava no ambiente em que o tal espírito estivesse transitando. Seria de homem ou de mulher?
Mary Juana, nem sempre pudica, mas espevitada esposa de Nicácio Prudente das Dores garantia que seria de mulher, posto que os homens do entorno não se valiam do “extrato” para seduzir as damas, mas de uma catinga nojenta nos sovacos que concorria para a perda do desejo carnal.
Nicácio, todavia, tinha certeza de que o perfume era a “Flor de Mutamba”, loção que os soldados de antigamente usavam para ficar cheirosos, quando das idas à Zona do baixo (freqüência dos seringueiros) e do alto meretrício (comparecimento dos seringalistas); fazer bonito nas danças e contra-danças com as meninas de vida difícil, aquelas que mercadejam o próprio corpo, era imperioso!
E o ex-soldado Salve Lindo Pendão da Esperança, se valia do perfume citado. Recebera esse pomposo nome através do pai, o Cabo Zoroastro Guajarino Mamorense, um ex-pracinha, Guerreiro Febiano, que, após a II Guerra, ficou excêntrico; esse filho desaparecera naquela baia, sem deixar vestígios; apenas um remo, a tarrafa, um terçado tinham ficado na canoa encontrada sem piloto.
A tempo e modo devidos esclareço que essa seleção entre o “Alto e o Baixo Meretrício” não é minha, pois politicamente incorreta, mas do Geremias Santos, bebinho em período integral e neo-intelectual daqueles tempos.
Escasseando a comida, Mary Juana pede a Nicácio que vá até a Baía do Meio e traga uns tucunarés para o jantar. Caía a tarde e crescia a escuridão da noite. Ainda horário propício para lançar a tarrafa.
Sozinho, o marido subiu o rio, e, remando adentrou na boca da baia. Uns pássaros piavam e uns uivos eram ouvidos lá de longe. A galhada de paus caídos próximo ao barranco recomendava a pescaria mais para o meio da Baía do Meio.
Um vento, como saído do nada, balançou árvores e os galhos gemeram, roçando uns nos outros. Os raios solares faziam suas reverências despedindo-se, qual mestre-sala ao derredor da sua porta-bandeira, demonstrando que a noite chegante, por ser feminina, merece sempre um lugar de destaque nos altares da natureza.
Outro gemido estalou, repercutindo nas várias direções. Nicácio arrepiou-se todo! Porém, valente, continuou remando. De repente, ouviu-se um silêncio ensurdecedor. Depois, nova sessão de vento foi precipitada por sobre a cabeça daquele homem. Outros arrepios! Uma tentativa de medo apoderou-se do pescador, nem tão incauto assim. O farfalhar do vento na copa das árvores sinalizou que algo poderia acontecer. De repente...
–Ei, você ai da canoa, quer enricar? Voz de quem estaria nos últimos estertores de uma agonia.
Nicácio, homem acostumado em não ceder às tentações, nem respondeu. Fez um lanço com a sua tarrafa e trouxe 5 tucunarés e dois surubins.
–Ei, você ai da canoa, quer enricar? Aquela voz, novamente, ecoava lá do fundo da baía, concorrendo para que Nicácio se apressasse no remo e aumentasse a pressão na água, desejando fugir daquele lugar. A noite já chegara e se debruçava nos braços da escuridão.
Com força descomunal, aquele homem fez a canoa quase voar em direção ao porto do seu sítio. Meio afobado foi falando para a mulher.
–Mary Juana, Mary Juana na baía tem uma alma medonha. Dessas de fazer o medo agarrar-se no corpo da própria mãe. E contou a mensagem que havia gravado no seu privilegiado cérebro; “–Ei, Você ai da canoa, quer enricar?”
Mary Juana, mulher invejosa, extremamente gananciosa, frustrada com a vida derivada das carências com que fora premiada casando-se com Nicácio, só pensava em ganhar dinheiro, haja vista que o seu apego ao vil metal saltava aos olhos, exageradamente, desejo intensamente sonhado e idealizado, tanto que adquirir bens materiais, roupas, jóias e se acumular de riquezas,ainda que, por meios poucos ortodoxos, era o que importava, haja vista ser praticante assídua dos pecados capitais: Luxúria, Gula, Avareza, Ira, Soberba, Vaidade e a Preguiça, mas sempre negligenciava na vontade trabalhar, atividade que não possuia pendor, nem ânimo.
–Homem medroso! a alma deseja apenas te ajudar. Por que “tu fugiu”, covarde?... Pronto, casei com um frouxo! Tu “deveria”, manter um diálogo com a alma e responder que sim...
E balançou a cabeça decepcionada. Em seguida, continuou:
–Amanhã trate de voltar lá e responda que sim! Seu imprestável. Foi falando alto, sem virar-se para o marido.
A madrugada, que meio sonolenta espreguiçava-se, desejando curtir outros momentos, encontrou Mary Juana desperta, cutucando o marido que dormia indolentemente. Interesseira, até que havia negligenciado com o recorrente ócio da sua vida.
–Vamos, seu traste! Avie-se, levanta, pois já fiz o café, arrumei seu terçado, a tarrafa, uma espingarda e um bornal com farofa de carne de cervo. Vá lá e já me traga o mapa onde localizar o dinheiro, as jóias e diamantes. Vamos, corra, homem de Deus!
Nicácio andou rápido, convidou a mulher para a empreitada. Ela, medrosa, fugiu da raia. Foi procurar o compadre Panfilo, morador abaixo, mas esse ainda nem tinha retornado da caça noturna. Resultado: receoso, foi sozinho de novo em direção à Baia do Meio. Lá chegando...
–Ei! Você ai da canoa, quer enricar? A voz da Alma já o espreitava!
–Quero, sim, Dona Alma, respondeu respeitosamente, de pronto.
–Então, vai dar o ... , seu Baitola.
Injuriado, Nicácio, nem pestanejou:
–Vai tu, sua alma fresca! Degenerada... E Baitola é você!
E o pescador, amaldiçoando a mulher, nem desejou mais pegar outros peixes. Visivelmente aborrecido foi remando de volta. Um riso debochado ainda ecoou, vindo lá de longe... A alma, além de fresca, sabia rir e zombar.
O certo é que depois dessa, Nicácio nunca mais retornou à Baía do Meio...
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