Domingo, 28 de janeiro de 2018 - 09h05
Pode parecer nostalgia. Mas, não é. Ao menos não é no sentido comum, de querer de volta. Ia falar que hoje me lembrei de cenas da minha infância. Nas idas e vindas ao hospital, tive uma infância para criança nenhuma por defeito.
Em um quarteirão, diante de duas ou três casas, era comum ver-se até 30 crianças provocando distúrbios na paz social. Crianças de 10 a 12 anos. Algumas senhoras chamavam de gangue mirim. Outras nada diziam, até que se entrasse em casa, porque eram nossas mães.
As situações foram tantas que poderia fazer dezenas de textos para lembrar de apenas algumas. Algo, no entanto, era estranho. Por mais que as altercações na rua, durante as novelas, incomodassem muita gente, não se ouvia xingamento, ofensas, nem se via criança correndo de adulto.
Penso que havia muito mais tolerância com a infância. Os preconceitos também eram menores. Mesmo que todos tivessem apelidos impublicáveis, nunca ninguém se bateu por isso. As brigas eram raras, mas havia por outras razões.
Disse estranho no sentido de não ver mais nada disso, de não me reconhecer na própria descrição de ambiente e do tempo. Também me pareceu estranho, muito mais estranho, quando – antes de lembrar da infância – vi uma nota dizendo que: “crianças morreram caçando Pokémons”.
Não sei muito bem o que são Pokémons. Porém, lembrei-me que ano retrasado, num evento sobre tecnologia na universidade, um acadêmico mencionou o jogo. Em animação 3D, formando a imagem “através” da tela, a pessoa poderia ver esse tipo de bicho animado. Pois bem, a matéria de hoje dava conta de crianças atropeladas, jovens caindo de prédios, na busca de aprisionar o desenho animado.
Confesso que não fiquei exatamente chocado – como se me dissessem que outra criança morreu nas festas de fim de ano porque uma bala caiu do céu e lhe acertou a cabeça, a nuca. É claro que isto não pode ser normal. É estranho porque não é normal, nem desejável. Então, ali, fiquei chocado com o fato de que alguém possa dar tiros para o alto, ao invés de soltar rojões – como nós fazíamos docilmente na infância.
Em paralelo, a tal caça aos Pokémons – levando pessoas à morte – me trouxe esse sentimento de achar que tudo não está só mudado, como se diz. Tudo está muito estranho. Às vezes, também penso que já nasci velho. Certamente, nasci velho para entender como alguém “se mata” atrás de Pokémons.
Para encurtar a história, fiquei sabendo que é comum grupos grandes de crianças e de adolescentes se reunirem na caçada à animação 3D. A narrativa ainda viria com a observação de que “os pais” não devem saber dessa jornada coletiva de seus filhos ao mundo 3D. Certamente, pais e mães não aprovariam. E foi aí que tive outro “Estranhamento”: lembrei que – na era da gravidez na adolescência – as próprias mães e os próprios pais é que estão na caça aos Pokémons. São pais e mães que estão morrendo, não os filhos, em uma vida desanimada.
Estranhamente, portanto, recordei das aulas sobre Estranhamento: como conceito da vida social sob o capital. Por exemplo: o trabalho precarizado tem o equivalente na “escravidão moderna”; à Política equivale a corrupção; a saúde e a educação públicas não são republicanas. E me vi estranhado (e entranhado) neste mundo, tanto quanto os jovens que não se reconhecem em si mesmos e, assim, recorrem aos Pokémons para saber mais de si. Pena que nem todos poderão voltar dessa viagem...
Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH
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