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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

A farsa do Estado Democrático de Direito


O Estado Democrático de Direito ainda desempenha uma função social civilizatória relevante, a exemplo da tentativa de criminalização dos crimes de homofobia. Em outros casos é um factoide político, uma farsa, como a Comissão da Verdade que não mudará o status jurídico dos terroristas de Estado de 1964. Porém, em outros momentos é um retrocesso, indicando um projeto retrógrado, reacionário, como vimos no engodo do Código Florestal.

É preciso lembrar que o projeto vetado pelo Executivo foi formulado pelo próprio governo, com a liderança do deputado Aldo Rebelo (PC do B). E, o mais grave, teria passado com tudo não fosse a pressão internacional. Até mesmo “diplomatas engajados no poder” reconheceram o passo atrás dado pelo Brasil; em breve teremos uma “Rio - 20”.

Quando os portugueses definiram seu Estado de Direito Democrático estavam absolutamente conscientes do fator jurídico inovador: Artigo 2.º - “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular ... visando a realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Bem como o art. 3º da Constituição italiana: “Cabe à República remover os obstáculos de ordem social e econômica que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana ...”.

As raposas brasileiras da Constituinte de 1986 sabiam disso e, por acordos e estratagemas como os que temos visto atualmente, esvaziaram sua essência. A mudança na terminologia, a inversão dos vocábulos, não é mera retórica ou “charme jurídico”.

Quando optaram politicamente pelo Estado de Direito Democrático, os portugueses reconheceram perfeitamente que apenas com a profusão de um “direito democrático” seria possível configurar um Estado Democrático. O contrário não teria lógica politica, a democracia não se impõe de cima para baixo, sendo o Estado o sujeito de direitos e a sociedade tutelada pela “razão jurídica absoluta”. Aqui a ordem dos fatores modifica tudo.

A força da inovação jurídica repousava na produção democrática do direito e, para tanto, não se chagaria ao direito democrático sem um intenso envolvimento social. Ou seja, o direito democrático só é viável com a democratização legislativa e isto recobre duas condições: 1) a democracia jurídica nasce da sociedade plural, inclusiva, participativa: a missão estatal deveria ser a remoção de todos os obstáculos da própria democracia; 2) a sociedade civil organizada traria para si a responsabilidade da produção jurídica. O que nos leva a uma conclusão lógica: a sociedade interativa exige o pluralismo jurídico – com revigoramento das legítimas fontes sociais do direito – e assim restringe o monismo, positivismo, dogmatismo jurídico.

Ao contrário do Brasil, Portugal conferiu um papel subsidiário ao Estado centralizado: no caso deles, unitário e não federativo. Reconheceu-se, então, que o pluralismo jurídico mudaria o eixo político. Para se confirmar o monismo jurídico na CF/88 basta verificar a resignação constitucional da democracia direta: referendo, plebiscito (dependentes exclusivamente da iniciativa estatal) e iniciativa popular (art. 14). Esta, na melhor das hipóteses, é recepcionada pelo Legislativo, quem votará ou não o projeto: a Ficha Limpa é exemplar.

Outro caso típico é a divisão absolutista em matéria de produção legislativa. Ao Estado, vale dizer, Congresso Nacional (quando não por Medida Provisória) cabe a legislação sobre tudo que é importante (art. 21). O que não lhe interessa designa aos Estados-membro (art. 25) e, subsidiariamente, aos municípios (art. 29) – sempre em ordem decrescente de valoração jurídica. O pacto federativo foi submetido, claramente, ao projeto político da época (e de hoje): o Estado Patrimonialista centralizado, burocrático e funcional na base da troca de favores políticos. Aos governadores-amigos, tudo; aos inimigos políticos, a lei. Aos inimigos, a burocracia e o normativismo verborrágico que não se vê na realidade do homem médio.

Quando se pensou o Estado Democrático de Direito, tinha-se de antemão a impossibilidade da democratização do Estado, pois isto exigiria negar/modificar as forças e relações políticas que acompanham a história republicana do país. Como não se democratizou o Estado – centralismo jurídico –, é óbvio, o direito resultante é estranho à sociedade, muitas vezes não tem eficácia; é a famosa “lei que não pega”. Mas não pega exatamente porque Estado e sociedade tem percepções jurídicas diferentes, às vezes opostas, contraditórias, antagônicas.

Por força de nossa história social, a sociedade se formou como organização plural – fomentando-se um pluralismo jurídico, como o “direito de laje” nas comunidades empobrecidas – e o Estado centralizador não pode abandonar as elites que lhe financiam a existência. Para ficarmos num período curto de tempo, lembremos que a CF/88 foi uma negociata do chamado “Centrão” e que a Constituição Portuguesa de 1976 (nossa inspiradora) respondia à Revolução dos Cravos: uma revisão política, democrático-revolucionária, contra os salazaristas que restavam. Nós não perdemos uma chance histórica em 1986, porque nunca a tivemos.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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