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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

A violência não vê o Outro


O macabro fuzilamento do policial em Jaci-Paraná, dentro da delegacia, o barbarismo social, a nulidade do reconhecimento do direito, a comiseração moral que se abateu sobre a sociedade inclusiva lembram algumas situações. A principal delas é que o Direito não se efetiva sem a contemplação do Outro, como parte da formação humanista de quem ama as pessoas e não seus bens, status ou poder. É um pensamento utópico, mas é real, sensível à vida social, honesto com o espaço público republicano. Na verdade, não se trata propriamente de utopia, mas sim de virtualidade, ou seja, a realidade em sua outra face, pronta a se revelar.

Desse modo, diante do “terror lancinante” que nos recorta, recheia, e receosos, enredamo-nos com as coisas temerosas, quando não tenebrosas. Muitas são elas, mas só para citar: violência, pobreza, solidão, terrorismo, cataclismo do planeta (se bem que este último, poucos se dão ao luxo do interesse), a perda do direito. Pode-se dizer com certa margem de segurança que a vida em sociedade é um produto global e social.

Há, assim, um ethos e um pathos a serem analisados na base e na origem da vida social. Como ethos implica em amor à humanidade (Humanismo) e paz: a sociabilidade requer reconhecimento do Outro, das outras pessoas. A sociabilidade é uma fabricação e requer sua depuração, não é algo natural. O ethos é a condicionante do direito social, é a garantia dessa sociabilidade; o ethos é a ética que pacifica o direito. Como pathos, doença mesmo, diz-se que a violência é um ato da razão praticada pelo Estado e seus corruptos, grupos econômicos dominantes, ou atende aos interesses dos simples ladrões e assassinos.

Contra a violência, que é a negação da vida social, Amos Óz, escritor israelense e Nobel da Paz, fala de um “amor lancinante”, mesmo que seja um “amor nos tempos da cólera” ou em “tempos sombrios”. As metáforas de Amos Óz são sobre as janelas da vida social que se abrem nos romances para todos que aceitam aprender sobre a vida dos outros. O que mais emociona, como empatia social, sociabilidade construída no reconhecimento do Outro, é a amplitude moral, humana que o romancista nos proporciona.

Em um caso determinado, o romancista faz um paralelo entre uma visitação turística e a leitura de um bom romance: “A leitura de um romance estrangeiro é um convite para visitar as casas de outras pessoas e lugares secretos de outros países”. Depois diz que se você já não é apenas um turista, então, é capaz de parar numa rua e ver uma mulher na janela de sua casa (você é capaz de “reparar”, de “dar atenção”): “Mas, se é um leitor, você não apenas verá a mulher que olha da janela, mas estará com ela, na sala dela, na sua cabeça” (Amos Óz). O leitor é esta pessoa aberta ao encontro do Outro, capaz da sociabilidade.

Como voyeur, aquele que olha o infinito das relações sociais, o leitor está desapegado à pressa de consumir os dias e as noites na produção material. Só assim o romancista da vida honesta percebe a exterioridade não-compulsiva, obrigatória, determinante, mas amena, contemplativa, desembaraçada em relação às determinações externas que provém, por exemplo, da superestrutura, das obrigações e das penas, e da coerção da lei social.

Enquanto leitor da vida do Outro, em ação não-invasiva, mas compartilhada dos melhores sonhos e grupo de valores humanos, o romancista é sintético, objetivo: recomenda amar à Humanidade. O amor além de si mesmo é contemplação, a dor da espera, a esperança que é uma quase-angústia e um desejo incontrolável de ver o Outro. Esse é o amor das mulheres, principalmente se for mãe. É um amor que se dá na cabeça, nos olhos e no coração.

É um amor de mulher que não tem medo e nem vergonha. Seguindo-se esta metáfora do “amor da mulher”, para o israelense, o mundo precisa abrir suas janelas, arejar, oxigenar as estruturas arcaicas (na mente, no coração e na política). Precisamos de mais disposição para ver o Outro – porque isto equivale a olhar para cada um. Mesmo que o antagonismo esteja à flor da pele, precisamos ler o outro:

Leiam romances, caros amigos. Eles lhes dirão muito. E essas mulheres também devem ler uma sobre a outra. Para saber, enfim, o que deixa a outra mulher na janela aterrorizada, irada ou cheia de esperanças [...] todas as mulheres, em todas as janelas, estão, no final do dia, precisando urgentemente de paz.

(Em: http://www.estadao.com.br/suplementos/not_sup74999,0.htm).


Esta ida até a outra cabeça, ao seu interior, esse desprendimento do “eu-ensimesmado”, é o que traz a abertura para o Outro, para o “eu-ampliado”. A literatura, a educação atenta ao direito do Outro, são pontes entre as pessoas. Seu reconhecimento nada mais é do que a construção de “pontes morais, sociais, intersubjetivas” entre os seres sociais: “Creio que a curiosidade possa ter uma dimensão moral. Creio que a capacidade de imaginar o outro possa ser um antídoto contra o fanatismo [...] De imaginar, realmente, os amores, os medos terríveis, a raiva, a paixão do outro” (Amos Óz).

Nossa Modernidade Tardiatem pouquíssima curiosidade (pelos outros) e, por isso, sobra hostilidade (ao Outro). Mas é factível, verdadeiro o sentimento que procura no direito o restabelecimento da “arte da aproximação entre atores em conflito de interesses”. Por meio da liberdade de dialogar, é-nos permitido entender porque o aneu logou, o não-cidadão grego, estava excluído da vida: quem não fala, não vive.

O humanismo representado pelo direito do/ao Outro requer a construção de pontes-amigáveis entre os indivíduos – se o direito é, por origem, social, logo, pode-se concluir que só se realiza na relação social.

Um direito restritivo, sem o Outro, desconsiderando-se o “amor das mulheres” é uma lei privada, sem esforço, sem repercussão, reconhecimento ou estofo social. Portanto, o construtor de pontes é um arquiteto da vida, pois seja literalmente, seja metaforicamente, sem pontes não há fluxo, e sem movimento não há vida.

A vida é tudo, menos inerte e os bloqueios de seu livre movimento são, pode-se dizer, a antivida, a antipolítica e o antidireito. Por isso, os gregos clássicos também viam no político um arquiteto capaz de fazer dois mundos antagônicos, contrários, falarem entre si.

Para Amos Óz precisamos de mais disposição para ver o Outro, captar seus sinais, localizar pontos de conexão (e mesmo que o antagonismo esteja à flor da pele).

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

Fátima Ferreira P. dos Santos
Professora de ética e noções de direito
Centro Universitário/UNIVEM/Marilia-SP
Mestre em direito

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