Sábado, 31 de janeiro de 2015 - 11h33
Apologia ao crime
- qual crime, cara pálida?
Este não é um artigo jurídico no sentido estrito, não segue o positivismo jurídico, mas traz histórias criminais. Indica mais uma reflexão geral do que uma avaliação específica de nossas leis. Retrata mais o que poderia ser; e pensar em qualquer tema numa abordagem do que “poderia ser” nos aproxima de uma reflexão filosófica. Interessa-nos mais o debate acerca do devir do que a realidade observada.
Como ponto de partida, recorta-se um caso concreto do interior de SP. Duas garotas foram detidas para averiguação e depois liberadas: supostamente cometeram o crime de “apologia ao crime” em virtude de trajarem camisetas e bonés com estampas de desenhos da folha da maconha: a Cannabis sativa. O fato é, no mínimo, estranho. Primeiro porque centenas de folhas se parecem com as daquela planta. Segundo, o desenho não nomeava a malfadada folha. Por fim, não havia em tal imagem alguém utilizando ou “fumando a erva”.
E não menos importante, a fácil constatação de que há crimes bem mais graves que esperam há anos, décadas para serem investigados, mistérios que sem engajamento das forças de segurança pública e de boas políticas sobre estas, jamais serão resolvidos, e, portanto, famílias jamais terão seu desfecho, suas preces, seus enterros, a sociedade jamais conseguirá respostas... Para quem o primeiro, o segundo, o terceiro e os “n” poderes terão sido inócuos.
Temos, a bem da verdade, uma crise de prioridades em nosso contexto decisório, tanto social quanto político – e porque não dizer, ético? Não é certo que preferimos construir imponentes teatros, aos mais simples hospitais? Promovemos festas “gratuitas ao povo”, das mais dispendiosas e variadas, ao invés de aplicarmos os alegados “parcos recursos” em ações de promoção da educação e profissionalização. Nada contra a cultura, arte e lazer, mas em sã consciência, uma sociedade não deixa direitos sociais básicos em último lugar dentro da lista de ações de governo, das políticas públicas de urgência. Nem só de circo vive o homem, e isso recordamos, quando recorremos ao pronto socorro.
Pensando neste ponto, o que dizer daquele homem médio em sua vida comum que vota, unicamente, porque outro sujeito cínico “rouba, mas faz”? Ele não só vota como espalha convicto seu veneno político aos quatro ventos, em uma campanha desmoralizante. O que será mais grave: trazer um bordado que “pode” ou não, ser de maconha ou recomendar que todos elejam “legitimamente” assaltantes da República?
Não devemos ter muitas dúvidas. Pois, o primeiro, o eleitor, deveria receber uma pena de interdição de direitos – no caso, o direito de voto – até que fizesse um curso de formação política de oito horas semanais, durante um ano. O segundo receberia outra pena de interdição de direitos, deixando de votar e principalmente, de ser candidato. Além disso, teria ele e a família os bens bloqueados até o ressarcimento ao erário, e seria proibido de contratar com o Poder Público – até que a dívida total fosse paga.
Pela experiência temos visto que a Lei da Ficha Limpa em pouco tem ajudado. Em parte pelas inúmeras possibilidades recursais protelatórias, em parte por subterfúgios morais dos que lançam parentes e agregados ao sufrágio. São os novíssimos rostos da política, a maioria sem a menor noção de técnica administrativa ou de gestão pública.
Cínicos dessa natureza têm rara reabilitação.
O que também leva à discordância da lei que institui a corrupção como crime hediondo, especificamente quanto à pena de privação de liberdade. O cínico não precisa perder a liberdade de ir e vir; o que precisa é não ter liberdade alguma diante do interesse público.
Os condenados por crimes contra o Poder Público – federal, estadual ou municipal – não precisam de prisão; mas, deveriam ser proibidos de manter negócios públicos, igualmente, nas três esferas. Não são penas degradantes e nem cruéis. São penas reparadoras e preventivas de futuras falcatruas. Por que não fazer dessa, a máxima prioridade em prol dos futuros orçamentos que viabilizarão os empreendimentos de interesse verdadeiramente público?
Não precisa prender o cínico, até porque de nada adiantaria. Bastaria prestar serviços em orfanatos, asilos de idosos, hospitais infantis ou público em geral e em escolas de periferia. Seria muito educativo que por meio de sua pena por desvio de dinheiro público, e crimes de “colarinho branco”, ele, o cínico criminoso, visse e sentisse de forma muito próxima, o resultado da sua ação ao desviar dinheiro da saúde, da educação e de outras áreas vitais.
Precisaria comer a merenda das crianças. Sentiria o cheiro da saúde pública que não tem recursos nem para limpeza. Seria de bom alvitre que ele limpasse os banheiros – para aprender a humildade, como se ensina nos seminários. Isso não é humilhante.
As faxineiras subempregadas por empresas terceirizadas, no modelo degradante da privatização da dignidade humana, fazem isso há décadas e agradecem o salário minguado de cada mês. Seria degradante para o cínico e corrupto fazer isso, mas para a moça retirante, negra, semi-alfabetizada, explorada, não é? A República de verdade não pode ter duas regras ou uma regra e duas interpretações, de acordo com o status político envergado.
Voltamos ao nosso ponto de partida, o das “moças apologéticas”: Não estamos a defender infrações ao Código Penal. Nem se entra na discussão sobre uso medicinal para tratamento de doenças[1], como apontam diversos estudos[2]. O fato inegável é que da vestimenta de uma camiseta com folha(s) estampada(s) não vislumbramos risco à incolumidade ou à dignidade de quem ou do que quer que seja. Isso não nos fere em absoluto.
A lei 11.343/2006 promoveu a despenalização do uso da maconha. O seu uso continua proibido, certamente. É uma questão de política criminal, contudo, a imposição da pena de prisão ao usuário não é mais aplicada. A suposta autoridade que for contra essa diretriz, isto sim, ficará sujeita a outras sanções penais.
Hodiernamente, aqueles que desejarem têm meios para realizar uma Revolução Cultural, sem recorrer sistematicamente à violência. O Direito Penal nunca foi e não será uma resposta condigna à crise social, moral.
No âmbito penal dos crimes comuns, não é preciso banir o indivíduo destoante da ordem comum das coisas, da vida social, nem torturar. Sobretudo diante dos agentes da corrupção contumaz (quanto mais!), não cabe alongar a lista de crimes hediondos. Temos as penas civilizadoras que devem ser seguidas integralmente, a nosso ver, sem mediações ou interrupções. Essas medidas já se integrariam como progressão de pena em sentido amplo. Na sua falta ou descumprimento, aí sim, seriam os indivíduos faltosos presos para cumprir a pena de privação de liberdade, na sua totalidade, sem indultos ou perdões.
A República sempre deve dar o perdão aos indivíduos que cometeram crime, como é o exemplo da prestação de serviços comunitários. Todavia, sem transformar a sua reparação perante a sociedade em meras doações de cestas básicas, porque, além de ridiculamente aparentar um convite para novas infrações, em última análise, essa ação mostra o descaso do próprio sistema punitivo diante de um agir criminoso.
O perdão da República não pode, nem deve ser um sinal de fraqueza. Muito mais do que punir, a pena tem que ressarcir o dano causado e ensinar a nova via de conduta. Nisto, não há nada de humilhante, degradante ou cruel. A pena deve seguir pelo Princípio Pedagógico, como aprendizagem do “que fazer”.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
Layde Lana Borges da Silva
Mestre. Professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia e do Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar do Estado de Rondônia.
[1]Doença de Crohn, Câncer, Esclerose Múltipla, Artrite, dores neuropáticas, entre outras.
[2]Cf. http://super.abril.com.br/ciencia/verdade-maconha-443276.shtml. Vide estudos de Gregory Carter -Instituto de Realibilitação Saint Luke, nos Estados Unidos; Cf. http://www.livrariaflorence.com.br/blog/canabidiol-conheca-mais-sobre-o-uso-medicinal-da-substancia-quimica-encontrada-na-cannabis/.
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de