Terça-feira, 28 de maio de 2013 - 12h11
Um exemplo meio inusitado, mas bastante simples, da coletivização dos conflitos – e sem necessidade de recorrer a nenhuma forma inicial de institucionalização – é o que vem sendo chamado de Boletim de Ocorrência Coletivo. As vítimas de violência urbana (roubo, furto, estupro etc) devem entrar nos sites disponíveis no Facebook ou no Google, preencher uma ficha cadastral e imprimir um cartaz – esse cartaz deverá ser colado no lugar em que a pessoa foi violentada em seus direitos e todos que foram vítimas, naquele mesmo lugar, devem assinar, realmente como abaixo-assinado. A ideia base é que se tenha um mapeamento real, atualizado, visível aos cidadãos da violência urbana que afeta a todos, como se fossem placas com nomes de rua. Pode auxiliar o Policiamento Comunitário ao se estampar, demarcar os lugares mais perigosos e os horários mais críticos, evitando-se o trânsito por ali. A iniciativa é bastante recente e nasceu em Porto Alegre/RS.
Podemos ler as assinaturas no cartaz
Não se trata de um boletim de ocorrência policial preparado por um coletivo; também não se trata de nenhuma forma de judicialização imediata, como ocorreu com o mandado de segurança coletivo ou com a maioria das ações judiciais coletivas, especialmente nos anos 1980, no curso da Assembleia Nacional Constituinte (pressionada pelos movimentos sociais e pelo sindicalismo combativo). Trata-se de uma articulação que privilegia o espontaneísmo e o imediato; ainda que com todos os problemas e as limitações de organização afirmadas no espontaneísmo, é um coletivo. Digamos que seja um coletivo não-organizado e que aparenta resultados oriundos do esforço coletivo.
Na verdade, pode ser que nem supere a fase atomizada, em que os indivíduos vítimas da violência (“aqui fui assaltado”) aderem individualmente e que tudo não supere o denuncismo. Para o bem e para o mal, é o pós-moderno em ação. De todo modo, quem assinou o cartaz o fez com indignação – e o sentimento de indignação já mostra que a vítima está viva em sua análise crítica. Rompe-se o cinismo institucional do letrado “estamos providenciando as medidas cabíveis”. Tecnicamente, pode-se ver um coletivo não-organizado, não-centralizado, de origem espontânea, atomizada e com reflexos difusos, indeterminados, mas motivados socialmente.
Além de ofertar um mapeamento online da violência urbana, o BO Coletivo serve como denúncia social. Esta forma de denúncia coletiva acusa e expõe a incompetência e o descaso público com o povo, especialmente com os mais pobres. O maior risco, como se vê, é se perder no denuncismo e na desmobilização, em que o objetivo principal esgota-se na denúncia e não propriamente na ação conjunta. Isto é, as pessoas acabam considerando que sua tarefa seria apenas denunciar, assinando seus nomes no cartaz, mas sem uma mobilização efetiva que implicasse em maior policiamento nas áreas críticas – ou, de modo irresponsável, quando se assina um cartaz sem ocorrência alguma, apenas para pressionar as autoridades ou para ser solidário com alguém que, efetivamente, ainda não precisa.
Sem dúvida, estamos na Videosfera ou era da razão imagética, em que o imaginário é massacrado pelas imagens e virtualidades: temos o BO Coletivo assim como os criminosos têm suas páginas pessoais nas redes de relacionamento social, compartilhando a glamourização do crime. É óbvio que está muito longe de qualquer pluralismo jurídico – também nascido no Sul –, mas é um alento diante de tanta desinteligência pública. A coisa está tão feia em termos de insegurança pública que, mesmo os projetos bastante restritos a epifenômenos (estampando-se a aparência do crime – no cartaz) já trazem munição contra a letargia do poder público.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Pós-Doutor em Educação e Ciências Sociais
Doutor pela Universidade de São Paulo
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