Domingo, 22 de julho de 2018 - 07h59
A Constituição Federal de 1988 é expressão e amálgama de uma “mutação ativa” – operada pelo alto, mas com expressão popular –, porque trouxe índices libertários que o capital passaria décadas dissolvendo.
Como mutação passiva talvez o governo de Getúlio Vargas e a “entrega” da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) sejam marcos político-legais e econômicos; pelo alto e para contemplar o capital insurgente. Em comparação, o AI-5 no pós-ditadura militar de 1964 foi um retrocesso implacável, lembrando os piores momentos de César e do cesarismo na Roma antiga.
Inversamente a ambos, a CF/88 trouxe construções inovadoras: a desconcentração de poder e não apenas descentralização administrativa; uma das melhores defesas do meio ambiente (art. 225); a previsão da defesa do jovem e do adolescente (ECA); as cláusulas pétreas em guarida aos direitos fundamentais; a avaliação dos ataques à democracia na condição de crime hediondo (art. 5º, XLIV); a subalternização da propriedade à efetividade da função social: “rebus sic stantibus”.
Por outro lado, pode-se listar achaques à CF/88: as negativas à prevalência dos arts. 5º, 6º (incompleto) e 7º, especialmente na redução que provocaria ao capital mecanizado, na financeirização (robotização) e na terceirização que se viu com a reforma capitalista de direitos (2017); o abandono de restrições legais ao avanço do agronegócio frente às fronteiras verdes (liberação dos agrotóxicos); assassinatos no campo; a contaminação da Política (Polis) por uma judicialização seletiva; o massacre da laicização do Estado; a própria manipulação constitucional diante dos interesses hegemônicos. Seriam apenas exemplos de que a CF/88 esteve à frente do seu tempo.
Desde a década de 1990 (FHC), com o avanço de governos neoliberais – na forma do primeiro golpe institucional, subvertendo seu anseio social em prol do mercado e da privatização – a Constituição vem sendo esgarçada. O sindicalismo, ainda nos anos 90, foi abatido com amplo apoio do Judiciário; as privatizações tiveram atendido o objetivo de corroer a soberania nacional; dezenas de emendas à CF/88 removeram na prática o caráter social/socialista.
Hoje na casa de uma centena, as emendas à CF/88 serviram para desnaturalizar parte do Espírito da Lei Constitucional – especialmente no que se refere ao escopo de se constituir como Carta Política. Isto é, a Carta Política que, entregue ao sentido original, deveria combater as desigualdades e a miséria social, socializando-se as riquezas represadas em elites retrógradas.
O resultado, desde o Golpe de 2016, mede-se no aniquilamento da Polis, no crescimento do fascismo como força política e popular, nas tratativas subterrâneas entre mercado espoliador (na condição análoga à escravidão, na sonegação e evasão de divisas) e uma “intervenção militar”: fase de militarização da política que nos levaria para o colo de um Bonaparte. Hoje, há uma transmutação constitucional passiva ou involutiva, contrária ao processo civilizatório, praticamente fascista.
Observando-se este longo cenário de massacres da Constituição, em seus 30 anos, é mais do que plausível concluir que seus referenciais de 1988 construíram um dever-ser que, paulatinamente – progressivamente –, foi debulhado por golpes constitucionais a mando do capital hegemônico interno e externo.
A mutação ativa de 1988, ao invés de se agudizar – confrontando-se os limites e as estruturas de um mundo arcaico (das elites acomodadas à Senzala) com a modernidade requerida pelas classes trabalhadoras, pelos setores progressistas e pelos grupos de pensamento socialista e de emancipação individual e da Política (espaço público) –, enfrenta hoje as hostes que dormiam no passado que se julgava enterrado.
Não apenas o pensamento de César voltou à cena, tal como visto na greve dos caminhoneiros (locaute e blecaute) e no seu enfrentamento (GLO que foi quase um Estado de Sítio), como se tornou hegemônico no inconsciente popular. O cesarismo de regresso à barbárie – no dizer de Antonio Gramsci: dirigente do Partido Comunista Italiano – janta e almoça conosco todos os dias, depois do Golpe de 2016.
Assim, o que se mostrou passiva foi a aliança com o progresso ético e o desenvolvimento humano, uma vez que retroagimos na forma de enfrentar as crises sistêmicas do próprio capitalismo. Além de ninguém querer dividir, o bolo não cresce. Passivos estamos, conclamando por Césares, enquanto o país é destroçado. A revolução constitucional que não veio, soterrada em 2016, teria encerrado o pensamento atávico que nos cerca como verdadeiro Estado de Exceção Permanente.
Por isso, pode-se dizer que a Carta Política de 1988 não é passiva, foi cunhada para ser altiva e revigorante do mundo do trabalho, do mundo da vida pública e privada, da cultura, do pensamento mediano e das práticas sociais e políticas mais libertárias. Só que não foi bem assim que ocorreu nos anos 90 (FHC) e no pós-2016.
Vinício Carrilho Martinez (UFSCar/Departamento de Educação)
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de