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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

ESTADO PÓS-MODERNO


Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]
 

            Alguns dos problemas mais graves da atualidade são o individualismo, a relativização total e o pensamento mecanicista, como coisificação. COISA é algo muito ruim, porque reflete a falta de vocabulário, a falta de educação básica que deveria nos ensinar a expressar as “coisas” como elas são. Indica ainda certo desprezo, quando se diz que a escravidão tratava e trata as pessoas como coisas. Portanto, neste caso, o sujeito é quem subjuga os outros, transformando-os em objetos ou coisas inanimadas, inominadas. O sujeito acaba oculto ou inexistente pela ação da coisificação, materialização de elementos e propriedades ruins, depreciativas a alguém. A coisificação é o inverso, por exemplo da República, como (res) “coisa pública”, porque quem é coisa não é sujeito e onde não há sujeitos de direitos não há República.

            A COISIFICAÇÃO é um processo sistemático. Processos de coisificação e de esterilização ou desertificação da consciência social em torno da coisa pública (como parte do pensamento maquínico, mecânico, instrumental, imediatista). Foi assim, por exemplo, que se forjou o conceito e as práticas do chamado Estado-Ciêntificista[2]que é o Estado que se se serve das bases técnicas como forças produtivas do sistema capitalista, cujo uso e aplicação indiscriminada tornou-se crítico para a sobrevivência do Planeta. Portanto, nosso desafio deveria ser o de olhar para além do pensamento maquínico: como se o homem moderno, pós-moderno fosse movido, determinado, inquestionavelmente, irredutivelmente, por uma rotina tal que a sua reflexão é condicionada pela presença das máquinas que o cercam. Não há vida inteligente sem as máquinas, sem elas voltaríamos à Idade Média. Não pensamos, não produzimos, não há comunicação sem a máquina. Também estão na pauta o valor de uso (como negação da autonomia e do campo de ação do homem, em que somos “usados” como coisas) e o valor de troca (foco da coisificação, em que os sujeitos são “vendidos”, trocados como coisas), como valores determinantes, ilimitados no mundo do sistema econômico capitalista.

Politicamente, este mundo reificado implica em outra topologia e tipologia de Estado. Por hora, chamemos de Estado Reificado – reificado porque não deixa de ser coisificação, não se trata damáquina pública[3]e de sua serventia ao capital, mas também porque estão em desacordo com muitas das necessidades atuais[4]. É uma sociedade das coisas, com pleno domínio das massas:

Aqui não se tem mais a oposição massa/indivíduo, pois os indivíduos se tornam “dividuais” (divisíveis), e as massas se tornam amostras, dados, mercados [...] a “sociedade de controle” remete a trocas flutuantes, modulações intermediadas pela tecnologia e pelas senhas [...] o controle é próprio de um capitalismo de “sobre-produção”, que já não compra mais a matéria prima, e vende produtos acabados, mas que compra produtos acabados e monta peças destacadas, um capitalismo que quer vender serviços e quer comprar ações, um capitalismo que não é mais dirigido para a produção, mas para o produto (Fonseca, 2004, p. 271).

 

É crescente o processo de reificação, coisificação, em que o homem tende a ser programado, formatado à imagem e semelhança das máquinas. Essa coisificação da política, nos moldes do Estado Capitalista Moderno, também pode ser entendido como processo ideológico, quando se crê que o Estado possa ser realmente coisa pública. Entretanto, há o desafio certo de reverter o processo que transformou o Outro no Mesmo, nesta mesmice atroz e que vilipendia a própria individualidade, como quer Baudrillard (1990): Lá onde existia o Outro, adveio o mesmo. Por isso ainda é tão importante retornar aos clássicos para falar do mundo do trabalho, do mundo social e não apenas do homem-político: “O povo tornou-se público [...] Em momento algum as massas são engajadas de modo consciente política ou historicamente” (Baudrillard, 1993, p. 34).

            A reificação ou coisificação são processos excludentes, tendentes a transformar o sujeito em objeto, a razão e a livre expressão em instrumentos de dominação, a liberdade em bens adquiridos, comprados. Esta é a base do pensamento moderno, é chamada de razão instrumental: a qual nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é de dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Para esta forma de pensamento nossa condição humana cada vez mais depreciada, torna-se obsoleta, mero degrau rumo à inteligência artificial, mas à custa, é claro, da consciência moral, da visão de mundo. O ser humano é hoje um ser imbricado à tecnologia, que só consegue ver na razão um exponencial capaz de transformar o interesse desejável na realidade possível – sem muita consideração com os meios empregados.

Na origem deste pensamento estão as ideias do Renascimento, com a expansão de um espírito prático e quantitativo, dando origem à mecânica e, com ela (com o aperfeiçoamento do mecanismo do relógio), uma nova concepção do homem. A realidade técnica, seguindo esta análise, nem sempre mantém atuantes as fontes de formação da consciência. Atualmente, o que se chama de pensamento único ou de “pensamento maquínico” (Guattari, 1991) é uma conversão da autonomia em “mito antidemocrático”, legitimado pela “colonização industrial das consciências”.

Nessas condições, em que todo poder tende a ser absorvido pelo Estado que exerce controle global e, assim, transformado em poder repressivo/controlativo, é difícil visualizar grandes utopias ou espaços de autonomia, sem que a sociedade civil se movimente “contra” ou “para além” do Estado. Em suma, pode-se dizer que necessitamos sair da tese e da realidade da liberdade assistida, tanto quanto é preciso recuperar o fôlego para afinar as formas (modernas ou pós-modernas) de supressão da negação de toda a liberdade.

Nessas condições, de que Estado se está falando? É correto se falar de algumas matizes do Estado de Direito[5], a exemplo deste Estado Penal? Talvez estejamos falando de um Estado de Direito Prolixo, como mera forma de atualização da Razão de Estado. O que tanto a literatura quanto a teoria política nos indicam é que as metamorfoses do Estado Moderno fizeram coincidir (antigamente colidir) Estado e não-direito. Mas, também indicam saídas e uma delas é voltar à ideia da construção coletiva do mito republicano, a partir de uma educação fortemente marcada por valores próprios à coisa pública (a Paideia da modernidade).

É possível humanizar o poder?

 Este conjunto de princípios e de direitos legitimaria o direito de insurreição contra o opressor ou o direito de sedição, ao revés da própria Razão de Estado (não validada ou de legitimidade questionável), como se vê no caso da Bélgica[6]:

Dividida entre flamengos, que falam holandês, e valões, que falam francês, os belgas terão de decidir em breve se continuam unidos ou se seguem o caminho da Checoslováquia, que se separou em 1993 [...] A Bélgica é uma monarquia constitucional federalista que surgiu como um Estado tampão entre a Alemanha e a França, no século 19 [...] Os dois lados sempre reclamaram de discriminação [...] “Não há um sentimento de união belga. Não há uma língua belga, não há nada belga, disse esta semana Filip Dewinter, líder do partido nacionalista flamengo Vlaams Belang [...] O país já teria se dividido se os belgas soubessem de que lado Bruxelas ficaria. Historicamente flamenga, a capital afrancesou-se com o tempo e virou uma cidade valona (Bruxelas, 19/09/2007 – grifos nossos).

 

Este movimento liderado pela região de Flandres, entretanto, espelha um curso que pode se alastrar por toda União Europeia: como uma onda separatista que reascende. Os países que mais sofrem com isso, além da Bélgica, são País de Gales (o partido nacionalista Plaid Cymru conquistou 15 cadeiras no Parlamento e forçou o primeiro governo de coalizão), Escócia (o Partido Nacional Escocês venceu as eleições em 2007). Na Espanha, há 17 regiões que exigem cada vez mais autonomia[7], liderados pelo País Basco (com referendo separatista) e pela Catalunha (aprovando-se um Estatuto de Autonomia, em 2006). Nesta linha da sedição/retaliação, com elementos muito fortes de intolerância e xenofobia, ainda é interessante destacar a 59ª Feira do Livro de Frankfurt, maior evento literário do mundo, e que em 2007 teve a Catalunha como “país tema”. Por si só, a escolha já despertou a ira de escritores espanhóis de outras regiões e, para piorar, também desagradou profundamente catalães que escrevem em espanhol, mas que não foram convidados. Outros não aceitaram o convite porque alegam temer ser “instrumentalizados pelo nacionalismo catalão” (Damasceno, 10/10/2007).

Os “focos” ou alinhamentos xenófobos, no entanto, estão se “espraiando pela Europa”. Além da população curda, na Alemanha, também os suíços se encontram divididos quanto ao papel dos imigrantes em seu país. Em 2007, às vésperas das eleições gerais, havia cartazes espalhados por todo o país com três ovelhas brancas chutando uma ovelha negra para longe, e em que ainda se lia: “Para ter segurança”. O cartaz é produto do mais poderoso grupo político no Parlamento federal e membro da coalizão: o ultradireitista Partido do Povo Suíço (SVP).

Micheline Calmy-Rey, presidenta da Suíça no sistema de rotação, foi direta ao dizer que o cartaz “estigmatiza outros e joga com o fator medo, e neste sentido é perigoso”[8]. Muitos têm ficado chocados com esta política racista e ofensiva porque, nos últimos tempos, a Suíça se tornou porto seguro para “refugiados” e “exilados políticos”, de lugares e culturas tão diferentes quanto Kosovo e Ruanda.

Para o senso comum, alimentado pelo SVP, a “ovelha negra” é o imigrante infrator: 20% da população é imigrante e compõe 70% da população carcerária, segundo autoridades federais. Como parte da campanha sórdida, o SVP espera reunir 100 mil assinaturas para forçar um plebiscito, propondo que juízes possam deportar estrangeiros depois de cumprirem penas graves, assim como toda a sua família. A oposição lembra que a iniciativa é nazista, uma prática da Sippenhaft ou “responsabilidade por parentesco”. Mas, o SVP responde alegando que isto reforçaria a famosa identidade nacional (Sciolino, 11/10/2007).

O SVP, mesmo com uma das sete cadeiras do Conselho Federal (desde 1958, um “acordo de cavalheiros” divide o Conselho entre os quatro maiores partidos), ainda teria de convencer os demais votantes e, depois, submeter suas decisões a plebiscito popular. Tudo isso é uma imensa ironia se pensarmos no arrojo que foi o lançamento de candidaturas ao Legislativo por aquele que ficou conhecido como Partido Pirata, no país de “abertura semelhante”, a Suécia[9].

Os separatistas perderam o medo do impacto da independência, porque a União Europeia os reconheceria como membros, e as regiões mais desenvolvidas economicamente também estariam “cansadas” de liderar as demais (a exemplo de Flandres, com “indústrias de ponta” e baixo desemprego). Esta é a opinião de Robin Shepherd, pesquisador do centro Chatham House, de Londres. A população dessas regiões também está muito dividida e não há apostas seguras, além do receio de que uma extrema fragmentação do poder (ou da Razão dos Estados) seja evidente. Shepherd vê a União Europeia como um grande Estado, com soberania de igual dimensão e Razão de Estado não inferior: “Para Shepherd, a atual crise na Bélgica deve servir de alerta para aqueles que acreditam em uma profunda integração europeia e querem transformá-la em um super-Estado” (Dorlhiac, 1º/10/2007).

De todo modo, é preciso ter claro que a “identidade cultural” leva à fragmentação, porque no passado o Estado-Nação foi formado à base da opressão e não da adesão e do consenso[10]. Há povos, então, como os curdos, que ainda lutam por território, unidade, soberania, “direitos dos povos”, reconhecimento internacional da cultura e da precariedade de sua gente e desinteresse global. É um povo errante que luta pela sua Razão de Estado e, portanto, vale-se do direito de sediação. O Curdistão tem uma área aproximada de 500.000 km², a maior parte na Turquia e o restante no Iraque, Irã, Síria, Armêniae Azerbeijão. Oscurdos vivem há milhares de anos nas montanhas da Ásia central e são hoje a mais numerosa etnia sem Estado no mundo: sem que tenham o direito de autodeterminação dos povos reconhecido.

Quanto ao poder político, ou poder em si — poder de mando legítimo e não simplesmente legal — pode-se utilizar extensamente da etimologia, partindo do clássico potestas in populo. É este sentido de real integração do Poder Político que a fase atual do Estado Moderno parece ter perdido. Como se o poder não mais pertencesse ao povo que constrói e ratifica a espera pública:

É claro que potestasderiva de um verbo que significa “capacidade”, ser capaz de, como ainda é transparente em francês (onde pouvoirsignifica, como verbo, “posso”). No entanto, a etimologia da palavra poder expressa apenas parte de seu significado político, que não é capacidade de fazer, mas puissance, “capacidade de mandar  fazer” (pouvoir de faire faire). Essa diferença é muito clara no alemão Macht, que significa tanto poder quanto força [...] Assim, o poder ordena; e o poder do Estado dá ordens sustentado pelo monopólio legal da força. Mas, quando opoder é concebido assim, fica imediatamente claro que não é suficiente para explicar como uma sociedade política se mantém coesa e porque seus membros cooperam [...] Os filósofos insistem há muito tempo que o cimento das sociedades políticas não é proporcionado pelas ordens, mas por uma coisa muito diferente a que chamam de “obrigação política”. Por outro lado, mas também simultaneamente, em geral dizemos que os regimes políticos são mantidos por sua “legitimidade” e solapados, quando não totalmente destruídos, por uma crise de legitimidade. Por sua vez, uma crise de legitimidade em geral é traduzida por uma crise de “autoridade” e detectada como tal (Sartori,1994, p. 253).

 

Ou, em uma última forma, podemos entender como a virtus da Justiça, como diz um dos maiores poetas do Humanismo:

Os corações também são motores.

A alma é poderosa força motriz.

Somos iguais.

Camaradas dentro da massa operária.

Proletários do corpo e do espírito.

Somente unidos,

somente juntos remoçaremos o mundo,

fá-lo-emos marchar num ritmo célere.

(Maiakóvski, s/d, p. 138).

 

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1992.

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do Mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas-SP : Papirus, 1990.

______ À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São Paulo : Brasiliense, 1993.

BRUXELAS. Sem governo, cresce apoio à divisão da Bélgica. Jornal Estado de S. Paulo. Caderno A, p. 12, 19 set. 2007.

CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre-RS : Fabris Editor, 1998.

DAMASCENO, Marcio. Política de identidade cultural é faca de dois gumes.Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno 2, p. 1, 10 out. 2007.

DORLHIAC, Gabriella. Divisão da Bélgica incentiva outros separatismos na Europa. Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno A, p. 14, 1º out. 2007.

FONSECA, M.R. Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte : Fórum, 2004.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas, São Paulo : Papirus, 1991.

MAIAKÓVSKI, V. O poeta operário: antologia poética. São Paulo: Círculo do Livro S. A. [s.d.].

SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada: o debate contemporâneo. São Paulo: Ática, 1994. V. 1

SCIOLINO, Elaine. Questão da imigração divide até os suíços. Jornal Folha de S. Paulo, caderno A, p. 16, 11 out. 2007.

 



[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.

[2]http://jus.com.br/artigos/12666/o-direito-a-educacao-no-estado-cientificista.

[3]Essa coisificação da política, nos moldes do Estado Capitalista Moderno, também pode ser entendido como processo ideológico, quando se crê que o Estado possa ser realmente coisa pública.

[4]Basta lembrar que o Estado Moderno foi constituído à base da soberania, da laicização e do nacionalismo. No mínimo, hoje tudo é relativo e questionável.

[5]Uma discussão mais aprofundada se encontra em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5496.

[6]Outros exemplos marcantes são a Irlanda (e o IRA), a ex-URSS e outros que vagueiam sem pátria, como os milhões de curdos.

[7]A Espanha forma um interessante Estado de Direito Autônomo, apesar de ainda existir a ideia federativa.

[8]É de se lembrar que o medo e a “ameaça constante do uso da coerção, como controle e saneamento social” são os sentimentos mais latentes e, ao mesmo tempo, expressivos, do Estado de Exceção.

[9]Avançamos esta análise da democracia radical/virtual em outro momento: “O que se requer do Partido Pirata e de todos os cibercidadãos envolvidos na construção da democracia virtual é pensar o ciberespaço para além do liberalismo e capaz de agir com eficácia contra o totalitarismo. Por isso, ironicamente, proposições desse gênero têm de se mostrar capazes e fortes o bastante para superar esse tremendo paradoxo. A democracia virtual requer a superação do individualismo (na rede, o mero anonimato), bem como driblar o estatal, construir o público (como múltiplo), mas sem abdicar da individualidade, da intimidade (agindo contra o Estado-Polícia). Nisto estaria a legitimidade do ciberespaço como antípoda do Estado Leviatã, controlador, policialesco. Nisto estaria a intimidade responsável (além da liberalização do indivíduo) e com anonimato ou não: a inteligência coletiva da rede é quem deverá decidir e não governos, partidos ou Estados”. Em: http://www.gobiernoelectronico.org/node/5013.

[10]Na Bélgica, por exemplo, os flamengos foram historicamente oprimidos pelos valões.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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