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Vinício Carrilho

Estamos todos no Inferno por Dante e Maquiavel - 2


Dante ainda nos conta a saga de Guido de Montefeltro, um combatente ardiloso e cruel. Na velhice, quando tramava ser absolvido dos pecados, acabou conclamado de volta às armas pelo Papa Bonifácio VIII, com a promessa de “salvar sua alma”. O que ocorre é que, como no Fausto, o Diabo vem cobrar a conta depositada em um contrato espúrio (com objeto ilícito). Para esses tiranos – que abusam da violência, coerção e contam com tão pouca Prudência – recairá a pena que se abate sobre os homens sem virtù; sendo todos levados ao Inferno por Dante, Goethe ou pelo Diabo popular, apócrifo e disciplinador:

As astúcias, os mais escusos jeitos,

Tanto aprendi, e usei com arte infame,

que a Terra toda sobre os seus efeitos (Dante, 1998, p. 183).

 

            Teremos uma quase réplica no Fausto:

FAUSTO

Também isso devo a ti!

Assassinato e morte de um Mundo sobre ti, monstro!

Leva-me até lá, estou dizendo,

e liberta-a! (Goethe, 2001, p. 189 – adaptação e grifos nossos)

 

Com a diferença de que, em Dante, o Diabo logra êxito e captura o infeliz; em sina oposta a de Mefisto, que não viu ser cumprido o contrato de doação da alma (a)penada:

Veio por mim Francisco, no momento

da minha morte, mas um dos danados

anjos surgiu: “Não obstes meu intento!

pra baixo ele virá co’ os meus penados [...]

que: não pode absolver-se o impenitente [...]

pela contradição que o não consente [...]

A Minós me levou, e esse envolveu [...]

ditou: “Este é dos réus do ladro fogo [...]

que cobre o fosso onde o tribuno paga,

por sua carga, o que adquire desunindo (Dante, 1998, p. 185).

 

A versão mais antiga da lenda do capital que se conhece foi compilada e editada pela editora espanhola Siruela. Esta é a verdadeira versão apócrifa do texto e que serviria de inspiração para Marlowe (2006), teatrólogo contemporâneo de Shakespeare. Há em comum a ocorrência de mortes violentas e dolorosas, a fim de saldar o espírito devastador do capital. No texto inicial da lenda, anterior ao século XVI, lê-se que: “É chamado também de cárcere, pois quem for reprovado estará preso eternamente, pois no inferno como na prisão eterna a alma é julgada e condenada e a sentença se pronuncia como em um tribunal público” (Solar, 2003, p. 74). Esta compilação de uma cópia holandesa é assinada pelo editor inglês Johann Spies, em 1587. Além dos pecadores que contratam diretamente com o Diabo, como imortalizado por Goethe (1997), para Dante, o fundador de uma religião (ou de Estados, como em Maquiavel) é um iniciador de cismas, de rachas e sedições (sejam ou não religiosas) e isto se vê na nona vala, com penas absolutamente cruéis e ultrajantes:

Um outro então, na garganta furado,

co’ o nariz decepado inteiramente,

a quem uma só orelha havia restado (Dante, 1998, p. 189).

 

            Os maus conselheiros do rei não podem ser bons conselheiros de pais e filhos – e este é um pecado gravíssimo, como a perda da Razão (o que é o homem sem a Razão a lhe guiar?):

Filho, e pai, fiz recíproco inimigo:

Não foi Aquitofél mais celerado

Quando Absalão opôs da Davi antigo (Dante, 1998, p. 192).

 

            O poder é corruptível e leva à discórdia, especialmente se for entre salas, com segredos de alcova, sem transparência. A décima vala é reservada aos falsificadores e que tem o corpo todo coberto de sarna. Ali se faz justiça, mais ainda para os que a negaram às vítimas indefesas e quando em vida:

chegar à profundeza onde a ministra

do alto Senhor, infalível Justiça,

pune os falsários que ela aqui registra (Dante, 1998, p. 195).

 

            O Inferno teria a missão precípua de inculcar a consciência da coerção – o que não é exatamente o “sentimento de culpa”:

“Que a memória de vós não desvaneça,

No primo mundo, das humanas mentes,

mas que por muitos sóis ainda floresça,

dizei-me ora quem sois e de que gentes;

por vossa triste e fastidiosa pena

não sejais, por mostrar-vos, reticentes (Dante, 1998, p. 196).

 

            Vemos ainda a soberba que abala homens e reis, condenados que são à hidropisia, uma paralisia por aterramento (ou congelamento):

Quando a Fortuna pra baixo lançou

de Troia a soberbia que tudo ousava

e o rei junto co’ o reino cancelou (Dante, 1998, p. 199).

 

            Chegando-se ao último estágio do oitavo círculo, temos, igualmente, o fundo do poço da alma humana: “e vai levar-nos ao fundo do mal” (Dante, 1998, p. 208). Por fim, o fundo do Inferno é reservado aos que descem ao nono e último círculo do Inferno, os traidores dos parentes ou que, por ventura, tenham atentado contra a Razão de Estado – condenados a penas bestiais, de pura exceção:

Do mesmo modo as têmperas Tideu

Roía de Menalipo por despeito,

Como este o crânio do inimigo seu (Dante, 1998, p. 215).

 

            Os traidores de hóspedes estão congelados no terceiro giro do nono círculo e aí também o Inferno cometerá injustiças, condenando inocentes e negando-se ao cumprimento do Princípio da Pessoalidade da Pena:

Que, se o conde Ugolino era acusado

de algum castelo teu haver traído,

seus filhos não podias ter torturado (Dante, 1998, p. 220).

 

            Era necessário que se praticasse sobejamente a injustiça no Inferno, até mesmo para que não fosse um lugar desejado, como se ali se redimissem os pecados aplicando-se a Justiça plena. Agora, o que nos levará realmente ao Inferno é a perda da Virtude, a quebra do contrato de urbanidade, quando nutrimos os piores vícios contra o contrato social: a impotência, a ignorância, o ódio. Ao contrário dos valores necessários à vida social:

Fez-me a divina Potestade, mais

o supremo Saber e o primo Amor (Dante, 1998, p. 37).

 

            Isto é o que se lê no pórtico do Inferno, junto à advertência de que, aos que adentrarem, deixem do lado de fora toda a esperança.

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2002.

ALIGUIERI, Dante. A Divina Comédia – Inferno. São Paulo : Editora 34, 1998.

ARISTÓTELES. A Política. São Paulo : Martins Fontes, 2001.

BACON, Francis. Novum Organum & Nova Atlântida. São Paulo : Editora Nova Cultural, 2005.

BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 4ª ed. Brasília-DF : Editora da UNB, 1985.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia, 1997.

______ Fausto Zero. São Paulo : Cosac & Naify Edições, 2001.

HEMINGWAY, Ernest. A Quinta Coluna. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2007.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Maquiavel: curso de introdução à ciência política. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 1979.

____ A mandrágora. (2ª Edição). São Paulo : Brasiliense, 1994.

MARLOWE. A história trágica do Doutor Fausto. São Paulo : Hedra, 2006.

MAURO, Ítalo Eugênio. (Tradução e notas). A Divina Comédia – Inferno. São Paulo : Editora 34, 1998.

SOLAR, Juan José del (editor). Historia del Doctor Johann Fausto – anónimo del siglo XVI. Siruela : Madri, 2003.

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