Quinta-feira, 16 de maio de 2013 - 18h49
Dante ainda nos conta a saga de Guido de Montefeltro, um combatente ardiloso e cruel. Na velhice, quando tramava ser absolvido dos pecados, acabou conclamado de volta às armas pelo Papa Bonifácio VIII, com a promessa de “salvar sua alma”. O que ocorre é que, como no Fausto, o Diabo vem cobrar a conta depositada em um contrato espúrio (com objeto ilícito). Para esses tiranos – que abusam da violência, coerção e contam com tão pouca Prudência – recairá a pena que se abate sobre os homens sem virtù; sendo todos levados ao Inferno por Dante, Goethe ou pelo Diabo popular, apócrifo e disciplinador:
As astúcias, os mais escusos jeitos,
Tanto aprendi, e usei com arte infame,
que a Terra toda sobre os seus efeitos (Dante, 1998, p. 183).
Teremos uma quase réplica no Fausto:
FAUSTO
Também isso devo a ti!
Assassinato e morte de um Mundo sobre ti, monstro!
Leva-me até lá, estou dizendo,
e liberta-a! (Goethe, 2001, p. 189 – adaptação e grifos nossos)
Com a diferença de que, em Dante, o Diabo logra êxito e captura o infeliz; em sina oposta a de Mefisto, que não viu ser cumprido o contrato de doação da alma (a)penada:
Veio por mim Francisco, no momento
da minha morte, mas um dos danados
anjos surgiu: “Não obstes meu intento!
pra baixo ele virá co’ os meus penados [...]
que: não pode absolver-se o impenitente [...]
pela contradição que o não consente [...]
A Minós me levou, e esse envolveu [...]
ditou: “Este é dos réus do ladro fogo [...]
que cobre o fosso onde o tribuno paga,
por sua carga, o que adquire desunindo (Dante, 1998, p. 185).
A versão mais antiga da lenda do capital que se conhece foi compilada e editada pela editora espanhola Siruela. Esta é a verdadeira versão apócrifa do texto e que serviria de inspiração para Marlowe (2006), teatrólogo contemporâneo de Shakespeare. Há em comum a ocorrência de mortes violentas e dolorosas, a fim de saldar o espírito devastador do capital. No texto inicial da lenda, anterior ao século XVI, lê-se que: “É chamado também de cárcere, pois quem for reprovado estará preso eternamente, pois no inferno como na prisão eterna a alma é julgada e condenada e a sentença se pronuncia como em um tribunal público” (Solar, 2003, p. 74). Esta compilação de uma cópia holandesa é assinada pelo editor inglês Johann Spies, em 1587. Além dos pecadores que contratam diretamente com o Diabo, como imortalizado por Goethe (1997), para Dante, o fundador de uma religião (ou de Estados, como em Maquiavel) é um iniciador de cismas, de rachas e sedições (sejam ou não religiosas) e isto se vê na nona vala, com penas absolutamente cruéis e ultrajantes:
Um outro então, na garganta furado,
co’ o nariz decepado inteiramente,
a quem uma só orelha havia restado (Dante, 1998, p. 189).
Os maus conselheiros do rei não podem ser bons conselheiros de pais e filhos – e este é um pecado gravíssimo, como a perda da Razão (o que é o homem sem a Razão a lhe guiar?):
Filho, e pai, fiz recíproco inimigo:
Não foi Aquitofél mais celerado
Quando Absalão opôs da Davi antigo (Dante, 1998, p. 192).
O poder é corruptível e leva à discórdia, especialmente se for entre salas, com segredos de alcova, sem transparência. A décima vala é reservada aos falsificadores e que tem o corpo todo coberto de sarna. Ali se faz justiça, mais ainda para os que a negaram às vítimas indefesas e quando em vida:
chegar à profundeza onde a ministra
do alto Senhor, infalível Justiça,
pune os falsários que ela aqui registra (Dante, 1998, p. 195).
O Inferno teria a missão precípua de inculcar a consciência da coerção – o que não é exatamente o “sentimento de culpa”:
“Que a memória de vós não desvaneça,
No primo mundo, das humanas mentes,
mas que por muitos sóis ainda floresça,
dizei-me ora quem sois e de que gentes;
por vossa triste e fastidiosa pena
não sejais, por mostrar-vos, reticentes (Dante, 1998, p. 196).
Vemos ainda a soberba que abala homens e reis, condenados que são à hidropisia, uma paralisia por aterramento (ou congelamento):
Quando a Fortuna pra baixo lançou
de Troia a soberbia que tudo ousava
e o rei junto co’ o reino cancelou (Dante, 1998, p. 199).
Chegando-se ao último estágio do oitavo círculo, temos, igualmente, o fundo do poço da alma humana: “e vai levar-nos ao fundo do mal” (Dante, 1998, p. 208). Por fim, o fundo do Inferno é reservado aos que descem ao nono e último círculo do Inferno, os traidores dos parentes ou que, por ventura, tenham atentado contra a Razão de Estado – condenados a penas bestiais, de pura exceção:
Do mesmo modo as têmperas Tideu
Roía de Menalipo por despeito,
Como este o crânio do inimigo seu (Dante, 1998, p. 215).
Os traidores de hóspedes estão congelados no terceiro giro do nono círculo e aí também o Inferno cometerá injustiças, condenando inocentes e negando-se ao cumprimento do Princípio da Pessoalidade da Pena:
Que, se o conde Ugolino era acusado
de algum castelo teu haver traído,
seus filhos não podias ter torturado (Dante, 1998, p. 220).
Era necessário que se praticasse sobejamente a injustiça no Inferno, até mesmo para que não fosse um lugar desejado, como se ali se redimissem os pecados aplicando-se a Justiça plena. Agora, o que nos levará realmente ao Inferno é a perda da Virtude, a quebra do contrato de urbanidade, quando nutrimos os piores vícios contra o contrato social: a impotência, a ignorância, o ódio. Ao contrário dos valores necessários à vida social:
Fez-me a divina Potestade, mais
o supremo Saber e o primo Amor (Dante, 1998, p. 37).
Isto é o que se lê no pórtico do Inferno, junto à advertência de que, aos que adentrarem, deixem do lado de fora toda a esperança.
Bibliografia
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ALIGUIERI, Dante. A Divina Comédia – Inferno. São Paulo : Editora 34, 1998.
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo : Martins Fontes, 2001.
BACON, Francis. Novum Organum & Nova Atlântida. São Paulo : Editora Nova Cultural, 2005.
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 4ª ed. Brasília-DF : Editora da UNB, 1985.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia, 1997.
______ Fausto Zero. São Paulo : Cosac & Naify Edições, 2001.
HEMINGWAY, Ernest. A Quinta Coluna. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2007.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Maquiavel: curso de introdução à ciência política. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 1979.
____ A mandrágora. (2ª Edição). São Paulo : Brasiliense, 1994.
MARLOWE. A história trágica do Doutor Fausto. São Paulo : Hedra, 2006.
MAURO, Ítalo Eugênio. (Tradução e notas). A Divina Comédia – Inferno. São Paulo : Editora 34, 1998.
SOLAR, Juan José del (editor). Historia del Doctor Johann Fausto – anónimo del siglo XVI. Siruela : Madri, 2003.
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