Sábado, 28 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Gabriela e o professor - 'Teúdo e manteúdo' - personagens da vida real


Vinício Carrilho Martinez - Professor Adjunto II (Dr.)
Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas

Profª. Ms. Fátima Ferreira P. dos Santos
Centro Universitário/UNIVEM/Marília-SP


Na novela adaptada de Jorge Amado, Gabriela, há personagens de todo tipo que ocuparam a cena da vida real de uma Bahia (ou do Brasil) do passado. Por isso, muitos são personagens da vida real, a começar pelos coronéis e ex-escravos que se esforçavam em se manter vivos, na condição de trabalhadores ou de capangas da morte.

Há a própria Gabriela, uma retirante que também sobreviveu aos dramas secos do sertão. E há um professor meio esquisito, aliás, bastante estranho, mas de certa funcionalidade no enredo porque indica um esforço civilizatório daquela sociedade. O mais estranho, no entanto, é o fato de que tenha se amasiado com uma quenga, prostituta, e ela mesma uma personagem “tida e mantida” por um coronel.

Se não fosse trágico seria cômico, mas este professor – com o engenheiro e o dentista (morto) – que forma o núcleo do processo civilizatório, é tido e mantido pela quenga. Lá como cá, a vida material do professor é irrisória, um atentado à dignidade: não tem dinheiro para trocar de sapatos. O que parece cômico, na verdade, é trágico porque revela o que sempre foi feito da educação no Brasil.

Sua condição material de existência, refugiando-se sem esperanças na casa da quenga, é um demonstrativo dos muitos donativos e esmolas que a escola recebe. Dos “amigos da escola”, daqueles que trabalham de graça em atividades extraclasse, às doações de migalhas que muitas vezes servem de única merenda/refeição diária, tudo se revela absurdamente precário. A educação no Brasil é formada por um corpo descrente e outro doente.

Em Gabriela, o professor teúdo e manteúdo recebe, além dos afagos e demais préstimos de assistência emocional, doações de ordem econômica, como sapatos e gravatas (e muitas refeições). É certo que o tal professor/poeta é acometido de muita fragilidade emocional, como alguém que não se adapta à realidade social.

O professor parece um ser tímido, uma imitação de intelectual, mas no fundo é deslocado, provocado e provocador da miséria humana; um tipo claro de dominação pelo estranhamento, um “sujeito sujeitado” capaz de recitar, mas ignorante por completo do Iluminismo. Não é um poeta de verdade, com suas rimas encomendadas, medidas com força na métrica, mas é um provocador da civilização adormecida. O professor pode alertar suas alunas acerca da Ilustração, mas ele mesmo é incapaz de reconhecer a liberdade, a igualdade.

Com as rimas pretende indicar ao mundo que há saída para aquele estado de coisas, que no lugar da violência, da morte anunciada, da ignorância, do desprezo social, há a possibilidade de realização dos sonhos individuais não-excludentes. A ironia das relações sociais e o tipo bem caricaturado deste professor nos levam a rir, mas é de chorar se pensarmos que a realidade dos “sonhos de humanidade” está apartada de milhares de brasileiros.

Seus versos, pobres em sentido técnico, são ricos na mensagem da inteligência social que congregam – quando a quenga revela não entender o que lê, apesar de achar fabuloso, o que nos diz é que o espírito humano do brasileiro da época estava muito atrasado, preso ao passado de sombras e escuridão do analfabetismo. A bela moça é portadora da negação do acesso à cultura, educação, liberdade de pensamento e expressão.

É óbvio que qualquer indicação de refinamento intelectual é combatida como subversão, como ameaça às estruturas sociais dominantes, porque levam consigo a mensagem da interrogação. A dúvida sobre a certeza das relações sociais é o que há de mais civilizatório nos romances de Jorge Amado. São expressões já empregadas no pensamento social, mas o professor vê atonitamente a pulsão econômica que se origina no caleidoscópio ou ornitorrinco da ordem social brasileira.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoSábado, 28 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

 Toda tese é uma antítese

Toda tese é uma antítese

A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes no Brasil são racistas.          Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas.          É a nossa história, da nossa formação

Emancipação e Autonomia

Emancipação e Autonomia

Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a

Gente de Opinião Sábado, 28 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)