Quarta-feira, 27 de junho de 2012 - 21h37
A sensação de insegurança, além do mundo do trabalho e da segurança pública, pode ser entendida pelo fato de o mundo da cultura estar distante do direito. Nada parece mais estranho. Porém, ao contrário do que aprendemos nos manuais, de modo realista, há uma seletividade que opõe cultura e direito. Como exemplo, basta verificar que os direitos humanos não fazem parte da realidade e nem do imaginário da maioria das pessoas.
Nos dias atuais, o individualismo jurídico se define como discurso e ações que valorizam a supremacia do indivíduo frente ao grupo. Tem-se no indivíduo um ser-acabado-em-si-mesmo. Nesta ideologia, acredita-se que o indivíduo é naturalmente livre, nada pode sujeitá-lo. O individualismo, ao separar homem e natureza, também resultou na separação entre o bem, a verdade e a justiça, produzindo-se um abismo entre o ser e o dever-ser. O que é valorado decorre da vontade arbitrária dos indivíduos.
Em certo sentido, parece uma contradição, pois há um apego grande à liberdade. Contudo, só parece contraditório, porque a liberdade posta em cena se resume ao indivíduo, a seu individualismo. Liberdade sexual, para consumir e uma estranha requisição para ser livre de tudo e de todos: uma suposta liberdade para não contrair responsabilidades e cumprir obrigações.
A história nos mostra que isto é impossível, mas as próprias lições da história estão em xeque. O “sujeito de direitos” alega ser livre (e luta) para não ter responsabilidades coletivas. Invoca-se o direito de não se responsabilizar pelo Outro. Mas o curioso é que se apregoa uma liberdade sem real amparo no direito, porque o direito – como norma ou regra – é social por definição. O direito é social porque é motivado pelas demandas sociais e não apenas em razão de ter seus efeitos generalizados – como efeito erga omnes (“contra todos os homens”).
Pela lógica, o direito não pode negar a si mesmo ou, mais obviamente, negar o social. Logo, o indivíduo não pode se escorar no alegado “direito de não ter responsabilidades sociais”. Todavia, o individualismo jurídico opõe em contradição indissolúvel direito e liberdade. O direito que obriga à socialização e a liberdade de se furtar aos compromissos e responsabilidades comuns. Nesta estranha lógica da exceção, em que vigora o Eu-mesmo, direito e política andam dissociados, divorciando-se a ação política da deliberação jurídica.
Temos uma nova cidadania em surgimento, que não compreendemos em profundidade, ao negar postulados milenares como o de que o direito não pode se voltar contra a sociedade. Contudo, e aqui há outra faceta da contradição, vemos que isto é possível por meio da criação de uma lógica da exceção, geradora de um direito de exceção, que celebra privilégios (privi legem = leis privadas) com força de lei.
Assim, o que deveria ser excepcional, como último recurso de regulação, acaba por ser regularizado, tido como “normal” e assim se “normaliza” (impõe-se como norma e regra) a normativa que, desde a origem, é de uso irregular, extemporâneo. É esta normalização do excepcional, da exceção, que irá justificar a liberdade liberal expedida pelo individualismo jurídico. Por isso, nada mais contrário à sociabilidade.
De todo modo, é óbvio que não pode haver garantia social para esta noção liberal de liberdade. Seria o equivalente ao Estado – por meio de regras jurídicas, do direito – atestar concessão ao indivíduo para não ser sociável. Como se o indivíduo não mais fosse responsável pela política – lembrando-se que é por iniciativa da política que se matura o direito, dentro e fora do Poder Legislativo.
Mas, também na relação entre direito e política há uma reviravolta no senso que abriga o homem médio. De fato, com a política, há algo semelhante ao que ocorre com o “direito de se desobrigar”, uma vez que o indivíduo só reconhece a obrigação de pagar impostos (quando não há remédio) e de votar (esta ainda mais questionável, pois eminentemente política). Em troca, espera poder abster-se da reflexão e da ação política, pelo simples fato de que pensar/agir implica em responsabilidades. Abandonando-se o espaço público, o “sujeito de direitos” troca de lugar com os tecnocratas da política.
O resultado é que o indivíduo abdica de si mesmo; por força do individualismo jurídico, o suposto “sujeito de direitos” não é mais o protagonista da política e, por via direta, abandona o fórum do direito, uma vez que o direito é resultado imediato do embate das forças políticas.
O “sujeito de direitos” acredita, ingenuamente, que não precisa agir como zoon politikon – como “homem político”. Para se sentir livre das obrigações e das responsabilidades sociais, o indivíduo negocia, barganha com seu algoz e relega sua essência a segundo plano. Como um Zé Ninguém mantém a vã expectativa do direito, sem se responsabilizar politicamente na Luta pelo Direito.
Na verdade, esta barganha exigiria consciência, porque é necessário saber o que se faz, a oferta, o objeto da negociação. Hoje, esta desobrigação está no automático. Um automatismo político que se revigora no individualismo jurídico e assim se desconecta do social.
O espaço público se encerra, nesse curso liberal, como um espaço livre da política, para não se fazer política. Com a política retida, limitada a interesses excepcionais, o espaço público se torna refém de grupos, classes, camadas e se confina como exclusividade de poucos, dos tecnocratas ou dos profissionais do poder.
De tal modo que, com a política estranhamente indiferente ao indivíduo, o espaço público – tradicional fórum de mediação e de produção jurídica – produz direitos que não são sociais na sua origem. Portanto, este direito é excludente (do próprio sujeito que se julgava detentor) e assim se flagra uma evidente exceção. Desconectados do Outro – de nós –, o indivíduo não se afirma como sujeito de direitos, uma vez que, para ser sujeito e não ser sujeitado, não pode abdicar do direito à política, do direito de fazer política, do Direito a ter direitos.
Sem a ação consciente, requisitando-se as garantias políticas de que o direito será fruto e refluxo social, pode-se até assegurar o direito imediato, aquele de fruição individualista, como se o próprio direito pudesse ser consumido para ser regurgitado depois. Todavia, em troca do direito consumido, a garantia do direito futuro teria de se retirada, ou seja, pelo imediatismo inconsequente, abdica-se do Direito a ter direitos.
Nesta estranha lógica, o individualismo jurídico forja uma noção de liberdade em que o direito se revela como produto de excepcionalismo, dado que apenas excepcionalmente o direito seria produto social e resultado da ação política dos sujeitos de direitos. Opondo-se a liberdade individual à responsabilidade social, o individualismo jurídico retira direitos do indivíduo, garante privilégios como direitos de exceção, restringe a liberdade política e anula o espaço público como fermento social inerente ao sujeito político.
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