Sábado, 28 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Literalmente: a prostituição capitalista


Pensei que já tivesse visto tudo – ou quase tudo em termos de coisas estranhas acerca do capitalismo – mas ainda sou capaz de me surpreender. Por um lado é bom, pois revela que não estou indiferente, que ainda fico chocado, indignado; por outro, mostra que o sistema é capaz de gerar sucessivas doenças morais e sociais. Este foi o efeito produzido pela reportagem abaixo:

“Me sentia um lixo’, afirmou o microempresário Elcio Milczwski, 34, numa referência aos anos em que trabalhou na Ambev de Curitiba e era obrigado a ver garotas de programa tirarem a roupa, a esfregar óleo bronzeador no corpo delas e a assistir a filmes pornográficos em reuniões de ‘motivação’. A empresa foi condenada pelo TST (Tribunal Superior do Trabalho), mantendo condenação do TRT do Paraná, a pagar indenização de R$ 50 mil por ‘assédio moral decorrente de constrangimento”.

O mais estranho é que a doença para sempre ter mais, em um dado momento, aproxima-se demais da burrice. Este é o ponto em que, para aumentar os lucros, o indivíduo ou a empresa entram em colapso mental, moral e, totalmente dispersos do bom senso, cometem as maiores tolices. Ao afrontar o bom senso, invadem sem cautela os limites da lei, da sensatez.

Neste exemplo, é tão grande a distância entre o mínimo de inteligência e a ação institucional que se cometeu um crime grave, com lesão ao patrimônio da empresa. Isto é, além de não aumentar nenhum ganho, a empresa ainda teve prejuízo com advogados, com a indenização e, a mais grave de todas, teve a imagem totalmente chamuscada – e quanto a isso não há mais remédio, porque a decisão é de última instância.

Com a boca cheia, dizia-se que a Ambev foi a primeira multinacional brasileira. Como se o formato capitalista com base em multinacionais, com eliminação total da concorrência, fosse um fenômeno nacional. Ao contrário, o chamado Capitalismo Monopolista de Estado não traz benefício social, uma vez que, limitado à concentração de capitais não gera riqueza, trabalho ou segurança social.

Portanto, é fácil ver que, quando se diz que pelo lucro fácil se faz qualquer coisa, não é força de expressão. Há um apego quase insondável, inconfessável, invencível pelo dinheiro e pela acumulação de capital que muitos se comportam como doentes, obcecados.

O sujeito sabe que vai morrer e não usará nem um terço do que já tem, mas continua sua saga ensandecida por mais dinheiro. Do ponto de vista pessoal, é como se uma doença mental fortíssima se apoderasse dessa pessoa; uma loucura que não se vence nem com tarja preta.

Vendo-se pelo mercado, tem-se uma lógica em que, ou se vive desse modo, na base do tudo pelo dinheiro, ou não se realiza como cidadão, como pessoa humana. O cidadão completo é aquele que nem consegue contabilizar seu patrimônio, imortalizado na figura do Tio Patinhas. E se o sujeito conta os caraminguás e não enche a mão para descrever os bens valiosos – carro velho, casa de madeira, dois mil na poupança – esse não é de nada.

O patrimônio amarrado à força de trabalho, em que o trabalho é a garantia da sobrevivência, é próprio do trabalhador, de gente pobre, de segunda cidadania capitalista. Fala-se do lado fraco na luta de classes, longe do poder, distante do sucesso pessoal e social. Este sujeito não tem património, na verdade só conhece a força de trabalho que precisa vender todos os dias. Ele não vive contando dinheiro e vantagens, ele sobrevive do trabalho, contando as migalhas que caem do banquete das Ambevs da vida.

Cinicamente, ao invés de se reportar o humanismo na capacidade de solidificação das relações humanas, coloca-se o enriquecimento sem fim como condição humana. Logo, se o indivíduo é incapaz ou se está incapacitado para elevar suas próprias taxas de juros, é como se tivesse suspensos seus direitos fundamentais de pessoa humana.

Em 1832, o gênio alemão Johann W. Goethe publicou a versão definitiva de O Fausto, uma narrativa da tragédia humana baseada no acordo moral acertado com o diabo, com o capital. A lenda foi retomada no filme Motoqueiro Fantasma. Logo depois, em 1848, o pensador alemão Karl Marx publicou o Manifesto do Partido Comunista, em que descrevia em parábolas o avanço inarredável do capitalismo sob a regra do que “sagrado será profanado”. Só não imaginei que a inteligência devesse também ser profanada.

Pensando que atrás da Ambev há muitos outros bêbados pelo sucesso da riqueza, sinto que no Brasil há muita coisa de monstruosidade social que nem o Motoqueiro Fantasma explica.

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoSábado, 28 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

 Toda tese é uma antítese

Toda tese é uma antítese

A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes no Brasil são racistas.          Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas.          É a nossa história, da nossa formação

Emancipação e Autonomia

Emancipação e Autonomia

Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a

Gente de Opinião Sábado, 28 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)