Quinta-feira, 13 de setembro de 2012 - 11h32
Por ocasião do suposto novo Código Penal, cabe uma reflexão sobre a finalidade da pena. Os clássicos nos ensinaram, nos primeiros anos do curso de direito, que a principal finalidade da pena é a humanização do sujeito em desacordo com a lei. Vemos especialistas ou curiosos afirmarem que a ressocialização de presos é mito, fantasia, coisa de Papai Noel. Ressocializar criminalmente implica em dizer que a pessoa habituada pelo crime, dominadora dos valores, regras e práticas criminosas, seria capaz de, uma vez presa, mudar de atitude, modificar-se por completo a ponto de adquirir ou respeitar os valores e hábitos socialmente recomendados.
Para alguns seria como trocar de religião, sendo-se praticante e crente das mitologias seguidas não haveria como mudar de lado, abandonar os fundamentos religiosos. Note-se que, na base da cultura brasileira, é possível visualizar o sincretismo religioso como troca ou mescla de elementos de várias religiões, sem a presença – até recentemente – dos elementos do fundamentalismo religioso. Porém, em outros, compara-se, está certo que não funcionaria ou seria muito difícil porque equivaleria a confrontar o fanatismo e o fundamentalismo religioso, o tribalismo, ou mudar o time do coração. A ressocialização exigiria mudar de lado, estando-se em guerra, sendo valente combatente a serviço de seu país e daí mudar de lado; mas, sem ser mercenário. É possível um nazista virar um religioso? Isto é, seria necessária a mudança profunda, uma guinada, uma real metamorfose. Nessa linha, pode-se perguntar: quantos mafiosos arrependidos – não importa a razão – passaram a colaborar com o Estado?
Alguns alegam que nada disso será possível porque o sujeito não quer abandonar a vida que sempre levou. Outros, talvez até bem intencionados, dizem que, se até o findar da infância não se formou no indivíduo a credibilidade nos valores sociais e morais rotineiros, então, a chance está perdida e nada pode ser feito. Os funcionalistas têm uma base científica, mas estão presos a um funcionalismo exacerbado. Também chamado de “socialização primária”, este processo de impregnação moral tem uma faixa, uma fase, um determinado momento em que, mais ou menos, será definido o que seremos pelo resto da vida. A maturidade emocional, moral tem de ser marcada nesta transição da criança para a adolescência porque seria como delimitar, demarcar as bases da estrutura, condição moral, psíquica. Segundo o filósofo inglês John Locke, o homem é uma “tábula rasa” até que se preencha – e isto seria feito nesta faixa etária, agora estando de acordo com o sociólogo francês Émile Durkheim.
Todavia, é preciso entender que mesmo para os clássicos a aprendizagem e a sociabilidade tem curso durante toda a vida, ainda que haja uma fase, idade mais marcante, visível em termos de influência na personalidade moral, na cognição. A socialização é um processo de toda a vida, portanto, não um momento que se esgota na formação inicial. O que ainda permite dizer que a expressão socialização primária não está de todo modo correta, uma vez que, como processo, não há um setor primário e outro secundário, há um processo, um fluxo contínuo e ainda que variado em termos de aprendizagem e de socialização (que é a aprendizagem das normas abstratas).
Ressocialização pelo crime
A questão não é mais simplesmente saber se o sistema penal seria capaz ou não de ressocializar. Ao menos não tem mais o status, a mesma referência política. Evidentemente, é muito mais complexo modificar uma determinada compleição política, uma convicção ideológica, uma crença mística no crime. No mundo contemporâneo, o enfrentamento político – como partidarismo ou definição intransigente de um lado, na luta entre amigo/inimigo – substituiu as dificuldades culturais enfrentadas pela ressocialização. De forma simples e direta, o crime se organizou como partido. Dizendo-se de outro modo, os significados políticos atribuídos à criminalidade estão em patamar distinto, talvez superior. Antes, era comum uma política criminal; hoje, é fato a política criminosa que alimenta o crime. O crime organizado desenvolveu uma estrutura política própria, especializada aos seus fins. Antes, éramos criados sob o “mito do Estado”, em que as instituições encarnavam a nação; hoje, cresce o “mito do crime”, com seus partidos, rituais, místicas, hinos e comunidades. Neste sentido, além das dificuldades inerentes da ressocialização – convencer o indivíduo infrator a “trair sua índole” – agora, está postado o confronto com o mito de que o crime (re)compensa.
Lutar contra a mais que imperfeita realidade fática de um sistema prisional animalesco é uma coisa, mesmo com a evidenciação de que alguns presos criam crostas na pele, como musgo, limbo em que aderem fungos, bactérias, germes, sujeira. É triste demais, horripilante, mas é possível remover tudo isso. Realidade bem diferente é lutar, enfrentar o mito, porque o mito é uma crença cega que reúne em si o real e o surreal. Se o sistema carcerário “dessocializa” o ser social, remove dele qualquer traço de sociabilidade que levava – “institucionalizando-o”, obriga-o a seguir as regras inerentes ao sistema –, é em si algo complexo, mas compreensível. De natureza bem diversa é o mito, porque é uma estrutura mental, moral, política à procura da razão instrumental, lucrativa, realista (“o crime tem que dar lucro”), mas com base lastreada na mais pura irracionalidade. Por que saldar a violência, a morte, a corrupção dos corpos e das almas?
O crime politizado
O crime organizado é politizado, partidarizado, tem representação jurídica, institucional. Se o Primeiro Comando da Capital - PCC afronta o Estado é porque cresceu como força política capaz de rivalizar com o poder público, como na demonstração de força que parou o Estado de São Paulo em 2006. Nesta época, aterrorizados com as execuções sumárias, os policiais aplicavam a seguinte lógica quando combatiam nas ruas: (1) o policial tinha que se precaver; (2) ele sabia onde estavam os suspeitos; (3) não havia tempo para investigações; (4) fogo no suspeito. Não é difícil perceber que o Estado enfrenta uma força político-criminosa organizada, com recursos, e se vivemos em guerra civil sem que as forças de segurança reconheçam, é porque equivaleria a anunciar a perda da soberania. Nossa Razão de Estado se revela sem capacidade para esse tipo de confronto – a guerrilha urbana do crime leva a vantagem – os policiais são caçados na rua. Para seus membros, seguidores ou apoiadores, o partido é uma alternativa às injustiças do Estado de Direito; aliás, como anuncia seu Estatuto: “Iremos revolucionar o país dentro das prisões e nosso braço armado será o Terror ‘dos Poderosos’ opressores e tiranos [...] como instrumento de vingança da sociedade na fabricação de monstros”. Não é uma visão ingênua esta que denuncia a sociedade como fábrica de monstros – é realista, fala com conhecimento próprio.
Se as leis do mercado — “vale tudo pelo lucro”, pela expropriação, pelo simples desejo do “ter” — assinalam para os vencedores que estes “não podem ter clemência com a concorrência”, então, é fato mais do que lógico e óbvio que o ladrão de propriedades, como um membro qualquer desta sociedade capitalista, não deverá estar imune à ânsia de possuir a propriedade alheia. Um preso refinado, intelectualizado ainda poderia alegar em sua defesa que agiu conforme as leis do mercado — expropriação e apropriação individual, egoísta — e que deveria ser inocentado. Foi o que fez o PCC ao exibir em canal de televisão nacional as suas reivindicações, clamando pelo cumprimento do Estado Democrático de Direito. O que não é irônico e nem contraditório, uma vez que o preso tem perfeita noção prática do que é a dignidade humana. Em todo caso, muitas estruturas políticas foram copiadas pelo crime organizado, do Estado, como: segurança, controle, racionalidade administrativa (“contabilidade por partida dobrada”), tribunais de julgamento, cartilhas com regras escritas. Contudo, abomina-se a morosidade, a ineficácia e abatem com a morte a corrupção de seus membros agindo contra a associação criminosa. Porém, ironicamente, a estrutura que se alimenta da corrupção do sistema do Estado de Direito não tolera internamente os corruptos.
Mitologia do crime organizado
Se no passado líamos na escola sobre o mito do “bom mocismo” (do filósofo J.J. Rousseau a Ceci e Peri, de José de Alencar); no presente, milhares de jovens são embalados pelo mito do crime: do baile Funk que toca o “pancadão” (incitando ao crime) ao estilo de vida que recompensa mais do que trabalhar e produzir. Portanto, a mitologia do crime – iniciada no jeitinho brasileiro, na gambiarra das leis – se espraia em toda a sistemática social e, ainda mais, instala-se como partido e representação política. Nesta ideologia do crime – muito mais grave do que a “apologia ao crime” –, para seus seguidores, o que mata é a fome, a polícia, o Estado, não o crack e nem o latrocínio. O traficante substituiu as principais políticas públicas e neste momento coloniza as mentes com seu mito de “sucesso viril”.
A mitologia do crime sempre tem dados históricos e concretos. Assim, um homicídio (1993) é considerado o marco simbólico da criação do PCC. Transformado em narrativa mítica, a imagem da irmandade constituída de experiências comuns de sofrimento e de opressão entre os “irmãos”, é reatualizada no batismo dos ingressantes, quando ainda se tem a leitura do estatuto e a relembrança dos abusos cometidos pelas autoridades.
A realidade do poder que se impõe pelo partido a seus membros, entretanto, não tem nada de mística. O PCC financia as visitas de familiares dos presos e depois lhes cobra a conta. Fato que talvez explique o alto índice de reincidência dos condenados, pois eles saem da cadeia endividados e precisam voltar ao crime para pagar a conta. Com todos os presídios dominados pelo PCC ou por seus rivais, temos a privatização do sistema carcerário de São Paulo. O PCC controla a rotina dos presídios, os conflitos são resolvidos pela “mediação e disciplina”.
Adeptos do PCC misturam a reza católica com o hino de apologia ao crime. Sua mitologia produziu hinos como: “Ao poder! Amém...Um por todos! Todos por um”. O triunfalismo está presente neste sincretismo de realismo político e ufanismo religioso – neste tipo de “destino manifesto”, seus líderes são consagrados como heróis (se bem que alguns podem ser eliminados se falham nas estratégias, como após a rebelião de 2006).
Dividir para conquistar
Uma das maiores verdades da política ensina a “dividir para conquistar”. No Estado de São Paulo, permitiu-se que um grupo ou associação criminosa elimina-se sua concorrência e se fortalecesse como cartel ou monopólio do crime. Antes disso, em 1987, foram mortos centenas no presídio Carandiru; em 1990, a Lei dos Crimes Hediondos soterraria a ressocialização e a polícia mataria demais nas ruas paulistanas. Além disso, conclui-se que o Estado fomentou a criação de um “pensamento único” do crime, um monopólio. Depois, novos grupos ramificaram-se: Comando Democrático pela Liberdade (1996); Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (1999) – seus membros são conhecidos como “coisas”. Será uma coincidência? Como verdadeira dissidência ideológica, o Terceiro Comando da Capital defende o fim da cobrança de mensalidade dos “filiados”, da extorsão de familiares e da violência contra os próprios integrantes. Grupos menores são a Seita Satânica e a Sociedade Anônima. Ocorre que, se somados, esses grupos não chegam a 5 % da população carcerária. No Rio de Janeiro, a relação é ainda mais estreita, pois as milícias são formadas por policiais, bombeiros, oficiais, militares treinados e expulsos pelo Estado. Lembrando-se que muitos dos militares formados em forças especiais, em comandos, atingiram o limite de idade e foram dispensados pelas forças armadas. Para onde teriam ido, se foram treinados a vida toda para dissimular, ocupar, matar?
Todos os grupos têm estatuto próprio, escriturando as regras como direito positivo, efeito erga omnes, coerção no império da sua lei. Há profissionalização das funções: disciplina, gerência, inteligência. Antes centralizado, o PCC reinventou sua estrutura política; descentralizado, divide-se em células, as chamadas “sintonias”. Há muitas: uma Sintonia do Interior, a sintonia da ajuda (fornece dinheiro para presos e parentes), do prazo (relaciona os devedores), “bicho-papão” (cria sorteios e dá prêmios), da rua (coordena os “irmãos livres”), dos salves (divulgação das ordens da cúpula), do livro (cadastra os que entram na facção) e “dos gravatas” (advogados). Primeiro vimos surgir a liturgia e a estética do crime – como no cangaço – e agora temos sua mitologia. O maior problema político eivado do partido, na mitologia do crime, é que sua mística não é nada parecida com a de Robin Hood. Também por isso o crime organizado é muito mais de ordem política, do que mera questão policial.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
Profª. Ms. Fátima Ferreira P. dos Santos
Centro Universitário/UNIVEM/Marilia-SP
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