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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Modernidade Tardia - 1


Um ensaio de Antropologia Jurídica[1]

 

Vinício Carrilho Martinez [2]

 

RESUMO: o texto apresenta algunas relações entre direito e cultura, quer seja na forma do direito como controle social (política e direito), quer seja enquanto efeito doutrinário, teórico. Para efeito didático, o texto está dividido em quatro partes: a) Uma antropología do direito moderno; b) Segunda pele; c) Cultura jurídica; d) Direito, costumes e burocracia.

 

Palavras-Chave: Direito; Cultura; Antropologia Jurídica; Estado; Política.

 

Introdução

A expressão vem do latim cultura, de colo, cultivar, praticar, manter. Nunca se falou tanto de cultura. Mas, por que se trata tanto do tema como hodiernamente? A noção de raça está abandonada e a cultura permite pensar a unidade da humanidade na diversidade: “A diversidade é possível porque os seres humanos aprendem a partir de meios culturais” (Laraia, 2009, p. 163). Também pode-se dizer que este é o núcleo básico dos direitos humanos. Mas, devemos pensar em culturas, em diversidade cultural e, antes disso, em interpretações da cultura:

1. Acultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do homem [...] 2. O homem age de acordo com os seus padrões culturais. Os seus instintos foram parcialmente anulados pelo longo processo evolutivo por que passou [...] 3. A cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes ecológicos [...] 4. O homem foi capaz de romper as barreiras das diferenças ambientais e transformar toda a terra em seu habitat [...] 5. O homem passou a depender muito mais do aprendizado do que a agir através de atitudes geneticamente determinadas [...] 6. É este processo de aprendizagem (socialização ou endoculturação) [...] que determina o seu comportamento e a sua capacidade artística ou profissional [...] 7. A cultura é um processo acumulativo [...] Este processo limita ou estimula a ação criativa do indivíduo [...] 8. Os gênios são indivíduos altamente inteligentes que tem a oportunidade de utilizar o conhecimento existente ao seu dispor (Laraia, 2009, pp. 48-9).

 

            A natureza não existe em si, ou seja, a natureza recebe significado dado pelos homens e de acordo com as determinadas culturas. Nesta relação, a cultura corresponde à alteração do chamado estado in natura para uma outra condição da realidade, agora fabricada pelo homem. A cultura é a atribuição de significados à natureza e a posterior transformação do meio, à imagem e semelhança de quem a transformou:

Ao longo desta evolução, que resulta no Homo sapiens sapiens, o primeiro homem, houve uma formidável regressão dos instintos, “substituídos”progressivamente pela cultura, isto é, por esta adaptação imaginada e controlada pelo homem que se revela muito mais funcional que a adaptação genética por ser muito mais flexível, mais fácil e rapidamente transmissível. A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar esse meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna possível a transformação da natureza [...] A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura (Cuche, 2002, p. 10).

 

Isto quer dizer que não somos desfibrados, nossas fibras nos ligam duramente à cultura (como segunda pele), ao meio e aos demais individuos do grupo social, pois possuímos valores que nos permitem ter um senso de identidade e compartilhamento de valores e de significados. A cultura também não reduz a idéia de significado social à adequação entre conceitos e realidade: “Se é verdade que temos valores continua então a ser o caso de sermos mais do que mera forragem para alimentar conceitos” (Bottomore, 1996, p. 164). O homem é iminentemente cultural porque a hominização consiste na passagem da mera adaptação biológica ao meio, a um processo de adaptação cultural em busca de alternativas para satisfazer suas necesidades – ao modificar o meio o homem modifica a si mesmo e, desse modo, participa da transformação dos demais. Diz-se, popularmente, que a vida é uma rotina comum a todos e o que faz a diferença é o significado que se coloca nas ações e nas coisas – e isto é cultura. Assim, cultura é:

  • Provimento(ação) de necessidades, desafios, desejos – o desenvolvimento de técnicas e do trabalho são bons exemplos.
  • Adaptação(ao meio) e organização social – para tanto concorrem a política e o direito.
  • Fabricaçãode “novos significados” – modificando a própria cultura. A ideia de fabricação implica em intenção e intensidade.

 

Esta perspectiva antropológica da cultura não se resume à atribuição de significados comuns, como: nascimento, sofrimento ou morte. Também não se relaciona somente à capacidade humana de adaptar-se ao meio para produzir e satisfazer suas necessidades básicas. A cultura não indica uma adequação natural entre necessidades e atribuição de significações sociais correspondentes. Ao contrário disto, a cultura e a organização social exigem gradativa repressão de instintos biológicos: “Até este momento, a ênfase foi no significado mais importante de cultura, isto é, o sentido antropológico de cultura como meio de vida” (Bottomore, 1996, p. 166). A cultura, gradativamente, implica em controle sobre si mesmo – conhecemos esta reação como moral e ética e estas são inerentes a todos os grupos sociais. Além disso, a cultura deve permitir o oferecimento de regras de ação e relação social, sem as quais não haveria retração das vontades individuais e um mais expansivo convívio coletivo (no mesmo sentido da moral e da ética ou do direito). Neste sentido, não há interesses (e valores) que não contenham componentes culturais. Porém, ocorre que os interesses e os valores, via de regra, são colidentes e isto é um forte fator de mitigação das regras de coesão social. Os conflitos de valores e de interesses e os conflitos resultantes, bem como a forma de se solucionar no interior de cada cultura, determinam se são povos pacíficos ou violentos. Portanto, a cultura prova a capacidade humana de fabricar soluções inteligentes para problemas complexos – a exemplo das instituições (família, Estado), da organização social (sociabilidade, solidariedade), da invenção da técnica e da ciência (racionalidade, inventividade), do poder (dominação, “monopólio da violência”), do direito (coerção, “normalização”) e da política (vita activae[3], politia[4], ética pública).

O direito é cultura

O que nos leva a entender que o direitoé a cultura expressa ou uma das formas de expressão cultural, assim como as artes e a política. Háexpressõesclaras do jurista brasileiro Miguel Reale, já em 1940, indicando que o direitodevereverênciasà cultura:

  • “A norma jurídica é uma integração de fatos segundo valores”
  • “O Direito é uma ordem de fatos integrada em uma ordem de valores”
  • “O Direito não é puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma”
  • “O Direito é síntese ou integração de ser e de dever ser; é fato e é norma, porque é o fato integrado na norma exigida pelo valor a realizar”
  • “É da integração do fato em um valor que surge a norma” (Reale, 1998)

 

É óbvio como Miguel Reale é atento ao que dispõea própria lei, ao prescrever que a cultura e os costumessão fontes do direito[5]. A cultura é o mais singular trajeto da grandeza do espírito humano[6]. Vamos entender esta afirmação em etapas: do trabalho social à fabricação da cultura e da sociedade. Inicialmente, pode-se afirmar que o fato mais notável dos seres humanos é a combinação de adaptabilidade aos meios mais diversos e até inóspitose a inventividade de recursos, técnicas e da linguagem. Toda comparação estipulada pela Antropologia Jurídica se direciona no contraste dos povos e das culturas antigas em relação/comparação aos fundamentos do Estado Moderno e da imposição do direito positivo.

1ª Parte

Uma antropología do direito moderno

 

A Antropologia Política procura explicações do porquê determinados povos e suas culturas não terem desenvolvido instituições à semelhança do Estado Moderno. A Antropologia é uma ciência social do século XIX, mas o conhecimento acumulado a precede em muito. Assim é que já no Renascimento nota-se a precedência do positivismo (jurídico), em que Estado e direito se articulam no binômio jurídico maior – o desenvolvimento desse sentido resultaría na formação do Estado-Nação e depois no Estado Moderno. Por outro lado, no século XX vicejava a incidência do coletivismo: a relação tripartite entre Sociedade-Direito-Estado e que deveria superar a pirâmide jurídica de Kelsen. Então, migrando-se do Estado Formal à democracia, passou a vigorar a transposição do legalismo presente nas fórmulas do Estado de Direito para um nível superior de complexidade vista no culturalismo – aquí entendido como o aporte de significados próprios da Antropologia a alimentar uma cultura jurídica mais interativa com a realidade social. Em Reale há o clássico tripé jurídico composto pela Coerção/Universalização/Exterioridade, como atualização renovada pela cultura e à maneira do tripé Fato/Valor/Norma. Talvez estejam aqui os primórdios dos direitos coletivos: a luta política em que se apodera da estrutura jurídica para se converter em luta de classes no sistema capitalista. Por isso, é possível ver nos bojo dos Direitos Coletivos a ação de vários mecanismos de contenção do abuso do poder econômico (Autolimitação Social do Poder Público e Econômico) e como se viu em fins do século XIX em relação ao próprio Estado (Autolimitação do Poder Estatal). Por fim, a cultura política a influenciar o pensamento jurídico nos levaria a refletir sobre um novo modelo de Estado que nao fosse monista, clasista, etnocêntrico e, sucesivamente, produzindo um direito ampliado, inclusivo, não-xenófobo. Sobretudo no século XXI, deveremos ver a cultura como freio incisivo, corretivo do direito, por um Estado de políticas pluriétnicas. Mas, de quando se afirmou como Estado de Direito, também em fins do século XIX, a cultura aparecia bem distante da realidade jurídica do poder. A imagem monista de que o Estado é um grande homem, recheado de indivíduos menores, singulares, é um tótem absolutista, uma vez que – mesmo sob uma sociedade nacional unitária – as relações sociais são de oposição, contraditórias e antagônicas. O que pode gerar antinomias e luta pela libertação. Esta é a análise que se habituou a designar por Teoria Geral do Estado e mesmo que em autores como Jellinek o poder se apresentasse mais forte e organizado do que a sociedade.

Jellinek e o Estado de Direito

Jellinek é reconhecido como o fundador da disciplina de Teoria Geral do Estado, pois até sua obra ser conhecida aplicava-se uma leitura ora idealista (Filosofia do Estado) ora negativista (ideologias do Estado). Sua maior contribuição está, portanto, na tentativa de se realçar as bases de uma disciplina ou ciência que verificasse elementos de formação e de continuidade das estruturas e mecanismos do aparato estatal e que estivessem presentes em várias culturas. Na análise que propusemos no texto, o direito germánico salientado por Jellinek é oportuno de ser resgatado porque nos permite observar a articulação entre direito e cultura. Como bem diz Jellinek: “...a princípio o Estado germânico é uma associação de povos a quem falta a relação constante com um território fixo, o enlace permanente do território com o povo só muito lentamente se levou a cabo em sua história” (2000, p. 307 – tradução livre). Neste sentido, faltava ao Estado Germânico e ao Estado Feudal um enlace entre povo e território, ou seja, o que se chamou de adensamento e de identidade cultural. A base do poder era móvel, não havia plena identificação entre o Poder Público e o território, bem como ainda se lidava com grande variedade de costumes e de interesses. Não é fácil de se supor, mas a desordem política e a resistência ao poder central produziam inclusive a mobilidade física do Príncipe. Vejamos, novamente com Jellinek (2000), o exemplo da Alemanha:

A residência do Príncipe era algo completamente contingente e independente da organização do Estado. Por conseguinte, faltava-lhe desde o início a centralização. A dificuldade de organização para um povo que se estendeu por um vasto território e carece de um centro, é ainda maior em uma época em que as comunicações eram rudimentares e predominava a economia agrícola (Jellinek, p. 307).

 

Em comparação ao Império Romano,há um dualismo na base política e jurídica: “O reino germânico nasce, pois, como um poder limitado; por conseguinte, desde seu início traz consigo um dualismo: o direito do Rei e o direito do povo, dualismo jamais superado na Idade Média[7]” (Jellinek, 2000, p. 308). Assim, quando comparado à herança política romana é ainda mais evidente a existência dessas dicotomias no acento do poder:

Onde quer que dominasse a Constituição municipal romana, acentuando-se a substantividade política das cidades, algumas chegam em certas ocasiões, como na Itália, a alcançar uma absoluta independência. Posteriormente, e dotadas de privilégios reais, fundam-se na Alemanha e na França cidades que chegam a conseguir, ao menos parte delas, um caráter de corporações soberanas. Por isto, a divisão dual da natureza do Estado significa por sua vez a atomização do poder público, e toda a história dos Estados da Idade Média é ao mesmo tempo uma história do ensaio para chegar a vencer este desmembramento ou, ao menos, para minorar suas consequências (Jellinek, 2000, p. 309 – tradução livre).

 

Este modelo do direito público romano, em parte, manteve-se na legislação estatal posterior, e em parte foi removida. A compreensão de que o poder não pode ser afrontado, sob pena de norte, manteve-se atuante. De outro modo, a própria proximidade entre direito e cultura, no direito germánico, também se verificou na ideia de participação popular. Resumidamente, trata-se da evolução e da transformação por que passaram o direito de resistência e de participação:

O único modo de tornar possível o exercício da soberania popular é a atribuição ao maior número de cidadãos do direito de participar direta e indiretamente na tomada das decisões coletivas [...] O melhor remédio contra o abuso de poder sob qualquer forma – mesmo que “melhor” não queira realmente dizer nem ótimo nem infalível – é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis. Sob esse aspecto, os direitos políticos são um complemento natural dos direitos de liberdade e dos direitos civis, ou, para usar as conhecidas expressões tornadas célebres por Jellinek (1851-1911), os iura activae civitatis constituem a melhor salvaguarda que num regime não fundado sobre a soberania popular depende unicamente do direito natural de resistência à opressão (Bobbio, 1990, pp. 43-44).

        

O instrumento de governo libertário, desde Cromwell (1599-1658)[8], é o primeiro exemplo de um documento  constitucional moderno; o próprio nome revela sua ambição e natureza. Ele mesmo expressou claramente o que esperava desse documento: “Em todo governo, disse, tem que haver algo fundamental, semelhante à Carta Magna, permanente, invariável” (Heller, 1998, p. 178)[9]. No curso da história dos direitos público-subjetivos, por sua vez, teríamos de retomar a contribuição de Rousseau e a Revolução Francesa, quando se instituiu a educação pública obrigatória – como forma de melhor divulgar os ideais revolucionários republicanos.

Desse período até à modernidade também decorre a perspectiva de que o Estado deveria conhecer alguns limites quanto à projeção do poder político – o que se convencionou chamar de Teoria da Autolimitação do Estado: “...o Estado nos aparece como um duplo Estado em que o príncipe e as Cortes têm cada um seus funcionários particulares, tribunaise até exército e embaixadores” (Jellinek, 2000, pp. 309-310). O próprio Estado Moderno seria um tipo ideal, uma vez que se pode ver diferenças exorbitantes se tomarmos exemplos históricos para efeito de comparação. De todo modo, o conceito de tipo ideal foi emprestado do jurista Jellinek (2000), como vemos na concepção republicana do poder compartilhada pela ciência do direito, ao expor a urgência de se configurar um freio jurídico ao poder. O que corresponde ao Estado de Direito, na versão clássica de Zippelius: “a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas” (1997, pp. 377).Mas, ainda há que se lembrar das instituições normativas desse mesmo poder ora absoluto: “a Constituição designa o conjunto de normas jurídicas que definem os órgãos supremos do Estado, determinam a forma de sua criação, sua relação recíproca e seu âmbito de atuação, como também fixam a posição do indivíduo em relação ao poder do Estado” (Peña, 2003, p. 61)[10]. Por fim, há quem sustente que falta sentido à discussão e à terminologia porque no Estado Moderno não há liberdade sem a intervenção ou predisposição estatal ao seu reconhecimento. Não haveria sentido em insistir no caráter público da liberdade pelo simples fato de que não existem liberdades privadas fora do Estado. Desse modo, o liberalismo seria positivado como direito humano apenas no pós-Revolução Francesa:

Para a ideologia liberal o indivíduo é um fim em si mesmo, e a sociedade e o direito não são mais do que meios postos a seu serviço para facilitar a realização de seus interesses. A este respeito, certamente recorda-se que o mito mais representativo desta ideologia é Robinson Crusoe, que é “o herói do individualismo em ação”. A partir dessas coordenadas, os direitos individuais são considerados em sentido eminentemente negativo como garantia da não ingerência estatal em sua esfera: é o que Georg Jellineck denominará status libertatis e Georges Burdeau liberdade-autonomia (Luño, 2003, p. 35 – tradução livre).

 

De todo modo, a influência de Jellinek ainda se manifesta em outro jurista alemão de grande vulto e repercussão internacional: Hans Kelsen (1998). O chamado positivismo de Kelsen não resolveria adequadamente a superveniência da Razão de Estado, tal qual o liberalismo de Bobbio não teria maior eficácia: o resultado seria a formação atualíssima de um Estado Penal Internacional. O século XX se caracterizou pela consolidação de um sistema de Estados nacionais e pela superação do jus publicum europeum, com a criação da Liga das Nações e da ONU. O eurocentrismo cedeu espaço ao globalismo – o ideal de Kant da Paz Perpétua estaria mais próximo, como uma espécie de “profissão de fé cosmopolita” rumo ao “direito público da humanidade”. Enquanto o direito internacional se referia à relação entre Estados. O direito cosmopolita tratava da relação entre Estados e indivíduos (estrangeiros). Kelsen rejeitava a Teoria Dualista do Direito – separando-se entre direito interno e direito internacional –, opondo-se a Jellineck, e trazendo uma formulação nova para a interpretação de Kant. O direito nacional de todos os Estados nacionais soberanos seria elemento de um todo, partes de uma “ordem parcial”. O direito internacional, portanto, seria a unidade objetiva do conhecimento jurídico, o suporte para uma concepção monista (Teixeira, 2011).Pelo traço da história, vemos que na origem este seria um princípio (aliado à separação dos poderes) mais fortes quanto à defesa da liberdade do cidadão, afastando tanto quanto possível (ante o jugo da força física dos príncipes) a ação ofensiva e repressiva do Estado:

No entanto, o poder era suficientemente forte para proteger o cidadão e para garantir o direito, também era suficientemente forte para oprimir o cidadão e dispor arbitrariamente do direito [...] As instituições do moderno Estado constitucional e de Direito nasceram, em grande parte, como resposta ao desafio de um absolutismo absoluto. Neste sentido, a história da liberdade do cidadão é uma história da restrição e do controle do poder de Estado [...] Este procura um compromisso entre a necessidade de um poder do Estado homogêneo e suficientemente forte para garantir a paz jurídica e a necessidade de prevenir um abuso de poder estatal e de estabelecer limites a uma expansão totalitária do poder do Estado, assegurando na maior medida possível as liberdades individuais (Zippelius, 1997, p. 384).

 

Porém, de lá para cá, houve essa inversão ou reconversão ideológica, com o princípio atuando a favor do instituidor do Estado[11]e não do povo[12]. Por isso, podemos dizer que a visão distante, passiva, absenteísta (omissa) desfocada da realidade do mundo concreto, da Constituição e do Estado de Direito está bem avariada, bem como é cada vez mais mal avaliada. Em nossa história política, a distância entre Direito e Justiça é marcante, mas há outras características do Estado de não-Direito, como: “A redução da Administração a um partido único é um dos característicos do Estado Totalitário, no qual sociedade civil e Estado se fundem, reduzindo o indivíduo a seu instrumento” (Reale, 1997, p. 31). Da mesma forma, há características ou tarefas necessárias à defesa e à afirmação do pólo positivo do Estado de Direito: “É prevenindo-nos contra os males da xenofobia, do corporativismo e de disfarçados imperialismos que nos será, outrossim, possível passar do Estado de Direito para o Estado da Justiça Social” (Reale, 1997, p. 39). Bobbio, de outra forma, pautará o Estado de Direito de acordo com a responsabilidade pública (também chamada de obrigação política do Estado) e em virtude da fixação de regras políticas e administrativas que delimitem ao máximo o uso da força física:

Em qualquer sociedade e, portanto, também em uma sociedadedemocrática, a função fundamental do direito é aquela de estabelecer as regras do uso da força. Por regras do uso da força quero dizer: quem deve exercer o uso da força (não qualquer um, mas apenas aqueles que estão autorizados a exercê-la); como (com juízo regulado); quando (não em qualquer momento, mas quando foram completados os procedimentos definidos pela lei); quanto (você não pode punir um pequeno furto da mesma forma que pune um homicídio). Em um Estado de direito, uma das grandes funções das leis é estabelecer como deve ser usado o monopólio da força legítima que o Estado detém. Em uma sociedade despótica, não há nenhuma regra; o príncipe pode punir sem medida e sem limites. O seu poder de punir é arbitrário (Bobbio, 2002, p. 64).

 

De lá para cá, a Administração Pública teria, então, se convertido em Administração Pública Corporativista e com isso passaria a defender tão-somente os próprios interesses (ou da fração da burguesia que a financia). Contudo, há muitas formas políticas estranhas ao Estado, mas nao há ordem ou política sem direito e a forma mais vibrante é a que procura pela aproximaçao entre o direito e o mundo da cultura. Sendo que o Estado é apenas uma das formas de organização política possíveis, revelando-se a enorme diversidade da própria cultura jurídica ou política.



[1]O texto é uma versão ampliada, modificada de artigo publicado em 2012.

[2]Professor Adjunto II do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia – UFRO. Pós-doutor em Educação e em Ciências Sociais; Doutor em Ciências Sociais/UNESP e em Educação/USP; Mestre em Educação e em Direito; Bacharel em Ciências Sociais e em Direito.

[3]De modo simples e direto, pode-se entender a vita activae, a vida ativa, como ser livre para participar da política.

[4]É curiosa a lembrança de que na Grécia antiga os mesmos participantes da política eran ou poderiam ser integrantes da policía. Exigiam-se os mesmos atributos para uma e outra função – daí o tronco comum entre polícia e política (politia).

[5]Como se observa na Lei de Introdução  às normas do direito (DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942): Art. 4o “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (grifos nossos).

[6]“Desse modo, assim como Goethe disse que ‘no princípio há a Ação’, podemos dizer que “no princípio há a Regra”, como medida da ação. Ela veio assumindo as mais diversas configurações ao longo do tempo, desde as religiosas e éticas até as de mera finalidade utilitária, desde as político-jurídicas até as artísticas, desde as cívicas às militares. Foi assim que se iniciou o grande diálogo entre o saber e a técnica, ora predominando uma, ora a outra, tendo sempre como objetivo o comportamento humano, como expressão da normatividade” (Reale, 04/06/2005a).

[7]Em outro momento, como a reforçar o já dito: “...o Estado nos aparece como um duplo Estado em que o príncipe e as Cortes têm cada um seus funcionários particulares, tribunaise até exército e embaixadores” (Jellinek, 2000, pp. 309-310).

[8]Com a guerra civil inglesa, Cromwell formou uma tropa de cavalaria que seria a base de suas ações em campo de guerra. Liderando a causa causa parlamentar, concomitantemente ao comandante do exército (New Model Army – uma gerança renascentista da cavalaria árabe?), acabou por derrotar as forças do Rei Carlos I da Inglaterra e assim pôs fim ao poder absoluto da monarquia britânica.

[9]Heller empresta a citação de Jellinek, 2000.

[10]No caso brasileiro, as Teorias do Estado deveriam dar cobertura especial ao preâmbulo da Constituição, bem como analisar pormenorizadamente os artigos 1º ao 4º, pois o artigo 5º trata dos direitos individuais. A própria Constituição articula as Teorias do Estado, transformando em artigos os preceitos do moderno Estado Democrático – em seus artigos desfila a história política do Estado e da sociedade: do liberalismo à democracia; do liberalismo aos preceitos socialistas.

[11]Aliás, o texto já traz implicitamente essa noção, ao grafar que àquela altura o poder já era suficientemente forte para oprimir o cidadão.

[12]A escorchante cobrança de impostos é só um dos exemplos possíveis.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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