Segunda-feira, 20 de janeiro de 2014 - 13h59
O título da matéria já explica tudo: “Renda de usuário da cracolândia vem do lixo da Santa Ifigênia[1]”. Usuários de crack pegam o lixo eletrônico de uma das mais badaladas ruas de São Paulo e vendem para comprar a pedra do Mal. Também não é à toa – aliás, é uma das ironias da modernidade – que o lixo capitalista alimente o crack. Pois, o crack é uma droga que se faz com o lixo, os resíduos da mais notável droga capitalista: a cocaína. Alguns anos atrás, a cocaína foi celebrizada por ativistas do sistema financeiro das maiores capitais do mundo, especificamente porque acelerava a “tomada de decisão”. O “barato” é um impulso irresistível, ou seja, ideal para quem tem de lidar com a fluidez, volatilidade, pouquíssima espessura da economia virtual. Hoje, como justificar a exposição de bebidas nas TVs, se são drogas igualmente perniciosas ou até mais do que a maconha? É normal que três das dez maiores fortunas brasileiras pertençam aos sócios da Ambev (Companhia de Bebidas das Américas)?
A “questão das drogas” é muito complexa; no entanto, será coincidência que moradores de periferias, favelas e buracos urbanos estejam entre os principais usuários do crack, a droga mais corrosiva do cérebro? Será uma tarefa fácil suportar a miséria humana do dia a dia, nessas localidades e nas condições de existência que desafiam até mesmo as baratas mais cascudas? É claro que apenas a miséria não justifica, afinal, sociedades desenvolvidas e altamente organizadas como a da Holanda também têm suas cracolândias, em parques e em espaços exclusivos. Porém, não é difícil associar essas sociedades organizadas, burocratizadas pelo capitalismo e pelas tradições a outro fenômeno desagregador da condição humana: o suicídio.
Não é à toa também que sociedades como Japão e Suécia tenham índices tão elevados de suicídio egoísta, como nos ensinou o sociólogo francês Émile Durkheim. As pessoas simplesmente desistem de viver, não suportando mais a rotina, a mesmice, a perda de todo o sentido da vida ou então não admitem o fracasso (notadamente no Japão). Antigamente, na sociologia de Max Weber, aprendia-se sobre o “desencantamento do mundo”, como a perda dos sonhos e das ilusões compartilháveis (magia, religião). No pensamento de Walter Benjamin, o capitalismo faz perder a “aura”: tudo vira cópia, pastiche, retalho ou rebotalho. O homem comum em sua vida média ainda dizia que “não suportava viver de cara limpa”.
Se somarmos tudo isso, perceberemos que é provável que o Homem não aguente o peso ou o impacto da realidade acachapante, sem mecanismos de mediação ou refratários de uma consciência crítica, brutal, racional, sufocante sobre si mesmo. Isto explicaria porque até mesmo culturas bastante nativas e primitivas fazem uso de substâncias alucinógenas (como o peiote), ainda que em ocasiões reguladas, como nas festas coletivas. A conhecida “miséria humana” tem um preço insuportável para muitos. Em outros há uma procura pelo entendimento das substâncias ativas, a fim de se visualizar mecanismos de saída: um dos mais conhecidos é O Poema do Haxixe, de Baudelaire.
A miséria humana começa pela consciência de nossa finitude (somos o único animal dotado desta razão, compreendemos perfeitamente nossos limites e humilhações de sermos apenas o que somos). Com o tempo, às vezes bem jovens, percebemos que gostaríamos de ser muito mais do que seremos: os sonhos de criança se evaporam e a realidade cobra um preço alto, duro e com juros de agiotas. Passamos a ver que somos maus, perversos diante de certas circunstâncias e que nossa nobreza não tem motivos para se estender.
Contabilizamos nossa mesquinharia diária, o egoísmo, a miserabilidade dos que tem de superar a todos em uma concorrência sempre desleal. Nem todos pisam no pescoço dos pais, mas alguns vendem a alma antes de completar dezoito anos, e muitas vezes em troca de uma roupa de marca. Vamos vendo no cotidiano que os honestos são fracos, sem força para subjugar a imoralidade do próprio sistema que os criou.
A droga faz este efeito, liberta o indivíduo desse invólucro massudo, presenteia com a sensação de uma breve despedida de um lugar e de convivências indesejadas. Na fuga para o Paraíso, sem pecadores ou demônios consumistas, muitos abandonam a autonomia e se agarram numa fé translúcida. Assim, a fé se converte em outra droga: o ópio do povo (no dizer de Marx). Em todo caso, se você ainda puder se impressionar um pouco mais com os desígnios da vida não contada na televisão, leia sem compromisso A Rua das Ilusões Perdidas, de John Steinbeck. Lá, verá que o altruísmo e a solidariedade (como sentimentos humanos reais) podem ser uma droga poderosa contra a droga de vida.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais e Doutor pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e em Direito, é jornalista.
[1]http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1399670-renda-de-usuario-da-cracolandia-vem-do-lixo-da-santa-ifigenia.shtml.
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de