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Vinício Carrilho

O Direito Penal da Exceção - O Estado Policial e a negação da humanização


Alguns momentos são privilegiados para discutirmos a sociedade que temos e a que queremos. Em maior dimensão, um momento semelhante ao que temos transcorreu na formulação da Constituição de 1988. Ali as muitas visões de mundo estavam ali expostas e embaladas por intenso debate social e democrático. Com o Código Penal poderia ocorrer algo similar, ainda que em processo social mais reduzido do que aquele tido na definição do próprio Estado brasileiro. Por muitas razões não vemos o mesmo e, além disso, temos quase um único discurso pulando na mídia. Em uníssono, especialistas e jornalistas defendem a criação de novos tipos penais e a imposição de penas mais severas. Sem dúvida que a insegurança pública é gigantesca, mas a saída apontada pelo Código Penal não é eficaz.

Muitas vezes, o cotidiano e o senso comum nos conduzem a conclusões absolutamente equivocadas. Esta é a exata situação que observamos com a relação direito/sociedade, quando pensamos na força e na convicção necessária ao direito. A primeira das confusões faz pensar que a lei é o direito. Deve-se lembrar antes de tudo que o direito é demanda social, princípios e valores sociais – em seguida é política que se realiza no Poder Legislativo – e só depois é que será lei. Há muitas fases de mediação social, cognitiva, política, jurídica, antes que a necessidade social se transforme em direito positivo, ou seja, em lei. Ao povo se perdoa a simplificação, aos especialistas, não.

Nesse mesmo segmento do raciocínio, vincula-se o direito à segurança social e, em especial, ao direito penal. Como se o confisco da liberdade e a aplicação de penas muito severas fizesse elidir o conflito social, quando, na realidade, temos o contrário: nas sociedades desenvolvidas, equilibradas socialmente, com níveis menores de entropia social, a violência e a criminalidade são restritas. Nessas sociedades, o direito penal é um ramo marginal do direito e as penas são menos graves.

Exemplo concreto do direito penal como exceção à regra social pode ser visto no atentado terrorista ocorrido em Oslo, capital da Noruega, por um fanático cristão e neonazista – fato que resultou na morte de centenas de pessoas em 2011. O crime não encontrava amparo na legislação a fim de que pudesse ser julgado de acordo com suas dimensões, simplesmente porque a pena mais alta recepcionada pelo ordenamento daquele país não passava de 21 anos. Uma sociedade que desconhecia crimes hediondos até aquele atentado de proporções épicas não teria razões, evidentemente, para investir antecipadamente no agravamento das penas.

A lógica nos leva a pensar que, quanto menos violenta, doente, obstruída socialmente é uma sociedade, menor a incidência dos aparelhos repressores do Estado e menos acintosas são as penas criminais. A mesma lógica se aplica ao armamento utilizado pelas forças de segurança pública; quanto mais violenta a sociedade, mais armada e com maior capacidade de fogo será equipada sua polícia. Por que a polícia do Rio de Janeiro, a partir do BOPE (Batalhão de Operações Especiais) produz técnicas de enfrentamento e de alta letalidade que são copiadas pelo Mossad, polícia secreta de Israel – um país que nunca esteve em paz?

Ao invés disso, em sociedades menos violentas, o policiamento pode ser feito sem porte de arma de fogo, a exemplo da Islândia. Nessas sociedades, parte-se da premissa de que a liberdade é a regra no processo de socialização e que esta se imprime pelos níveis de interação social a que o indivíduo está sujeito. É desse conjunto de interação/integração social que decorre a humanização, como processo social de efetivação das capacidades sociais do homem-mulher em se realizar como ser social. A restrição da liberdade, portanto, não pode conduzir à socialização, pois a privação do convício social não pode aprofundar a sociabilidade individual dos presos. Do mesmo modo, se o direito penal destaca-se pela imposição de penas de restrição à liberdade – e se o ordenamento jurídico democrático se conclui na/pela defesa do direito à liberdade – logo, é de se concluir que, o direito à liberdade é a regra social e o direito penal sua exceção.

O direito penal é a exceção no amplo contexto do ordenamento jurídico e na própria definição do direito, como fenômeno social que ao promover as relações sociais induz à humanização. Neste sentido, o direito também é o motor da civilização, pois o direito cultua hábitos, relações, valores e práticas sociais de inclusão dos indivíduos na sociedade e, apenas excepcionalmente, sua exclusão. Também desse prisma se conclui que o direito penal é uma exceção ao direito. Se o direito é uma forma de inclusão social, em que as regras sociais que promovem o relacionamento social são protegidas pelo direito, a exclusão dos indivíduos (quaisquer que sejam as razões) só pode ser movida por ação marginal, excepcional. Isto é, o direito é a regra social e o direito penal é a sua exceção mais evidente.

A sociologia francesa, clássica e conservadora, de Émile Durkheim designou de direito contratual o polo jurídico que se opunha ao direito penal. Quanto mais industrializada, racionalizada, desenvolvida a sociedade, maior a presença do direito que se aplicaria à solidariedade, à cooperação, à ampliação e proteção dos espaços da vida pública e menor a necessidade do direito penal. A primazia social do direito é clara em Durkheim, pois que o direito na modernidade deveria reger a divisão social do trabalho:

  • “... é fácil determinar qual é o papel do direito restitutivoa que essa solidariedade corresponde: é o conjunto dos direitos reais [...] A relação entre a divisão do trabalho e o direito contratual não é menos acentuada. De fato, o contrato é, por excelência, a expressão jurídica da cooperação [...] Ora, essa reciprocidade só é possível onde há cooperação, e esta, por sua vez, não existe sem a divisão do trabalho”.

O aprimoramento da crescente divisão social do trabalho e a racionalização do processo de produção da vida social dependem, sobretudo, da fruição de um direito que seja integrativo, expansivo e cada vez menos restritivo, punitivo. Para as sociedades desenvolvidas interessa que o fluxo das relações sociais não seja travado, obstruído pelos meios de controle e de repressão social. Em suma, o direito é moderno, progressista, mas o direito penal é retrógrado, antissocial, em termos da concepção de ordem social formulada em seus fundamentos. Também por isso, crimes contra a ordem econômica são muito mais graves do que os crimes cometidos diretamente contra a vida. Ainda de acordo com Durkheim:

  • “Embora o ato criminoso seja certamente prejudicial à sociedade, nem por isso o grau de nocividade que ele apresenta é regularmente proporcional à intensidade da repressão que recebe. No direito penal dos povos mais civilizados, o assassinato é universalmente considerado o maior dos crimes. No entanto, uma crise econômica, uma jogada na Bolsa, até mesmo uma falência podem desorganizar o corpo social de maneira muito mais grave do que um homicídio isolado. Sem dúvida, o assassinato é sempre um mal, mas nada prova que seja o mal maior. O que é um homem a menos na sociedade?”.

O direito propriamente capitalista não é punitivo, castrador, porque o direito que melhor serve ao sistema capitalista é o que estimula a “cooperação social necessária à ampliação e manutenção da divisão social do trabalho, obtida apenas se houver solidariedade”. Quer dizer, o que ensinava Durkheim no século XIX está na contramão da história social de países como Brasil, EUA e outros tantos que cuidam com afinco do direito penal. Em uma expressão, o direito penal é uma exceção ao sistema capitalista, não lhe serve; é um direito anticapitalista se pensarmos que ele próprio direito penal impede, obstrui ou desestimula a realização do contrato social capitalista.

No sentido amplo de que se reveste a humanização, vale dizer uma vez mais que, se a regra da condição humana, da formação integral do homem, é a liberdade, a negação e a privação da liberdade só podem ocorrer em um momento de exceção do direito, de recusa da condição ideal do direito à liberdade. Quando se propõem formas de tratamento menos humanas, desumanas (independentemente das atrocidades cometidas) não se pensa na saúde da vida social, na socialização dos benefícios sociais como solução da crise social. As penas embrutecidas, endurecidas pela raiva e pelo desprezo social revelam que temos em mente algum modelo de Estado Policial – e não social. Neste tipo de mentalidade punitiva, restritiva, própria do Estado Policialesco, a prisão é a regra aplicada ao controle social e, como exceção da liberdade, condiciona a exclusão da regra social. Por isso, no Estado Policial e no direito penal, suspende-se a regra para se impor a exceção.

Por fim, cabe uma última reflexão: como pode a sociedade que exclui sua regra social, como principal mecanismo de controle social, ser uma sociedade equilibrada, sadia?

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

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