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Vinício Carrilho

O Estado Cibernético e o governo inteligente


Apesar do título ser estranha aos não-iniciados, este modelo ou Teoria Geral do Estado é uma das mais antigas ou clássicas. Cibernética vem do grego kibernetiké - Kybernets e se identifica como a ciência que estuda a comunicação como meio de controle. Politicamente, diz-se que o Estado é o piloto, o guia, o timoneiro, o chefe que dá direção, determina os meios para se alcançar o fim proposto.

 Ainda cabe ressaltar que o modelo cibernético (muito bem delineado pelo cientista social Karl Deutsch) traz uma estrutura/relação de fundo em que devem convergir a aprendizagem do sistema, a capacidade de adaptação aos desafios e à realidade, a partir da informação social, política recebida. De forma simples, pense se o Estado brasileiro tem capacidade de gerir os dados sociais (informações culturais) a fim de se adaptar às necessidades atuais.

Com esta informação inicial, indaguemos: o Estado brasileiro é cibernético? O leitor terá suas conclusões, mas pense se o Estado brasileiro é inteligente, responde com rapidez aos graves problemas sociais buscando as soluções mais adequadas? A cultura é vista ou recebida no interior do Estado como fato gerador da transformação social? Governo e legislador são capazes de absorver a cultura na ordem das políticas públicas? O legislador leva em conta a divergência cultural e a diversidade regional ao pensar a lei nacional?

Para Deustch, a própria lei ou capacidade legislativa do Estado deve expressar a inteligência política do modelo racional trazido pela cibernética. No entanto, sua lição é preciosa porque nos comprova que não importam as tais leis severas, “pesadas”, mas sim as leis adequadas e socialmente justificáveis:

  • “Quando os hábitos de submissão da população declinam ou desaparecem, as leis podem tornar-se inaplicáveis. Estas tornam-se, geralmente, de difícil execução quando menos de 90% da população lhes obedece voluntariamente. Foi o que aconteceu com a proibição. Um pouco mais de 50% do eleitorado americano tentou proscrever a sede de bebidas alcoólicas de um pouco menos dos outros 50%, mas a generalizada insubmissão às leis correspondentes impossibilitou o seu cumprimento. Isto, por sua vez, encorajou ainda outras desobediências à lei [...] Usamos leis para controlar o comportamento humano porque não custa muito fazê-las aprovar e, desde que a maioria das pessoas lhes obedeça voluntariamente, também não custa muito pô-las em vigor”.

Deustch trata da famosa Lei Seca das décadas de 1920-30, nos EUA, uma “lei que não pegou” porque, como vimos, metade da população não estava de acordo e a descumpriu ostensivamente, instigando o poder público com o ato de vender, comprar e beber bebida alcóolica. Esta desobediência civil americana – não cumprir a lei – produziu um exército de mafiosos, com Al Capone na liderança.

Desse modo, vemos claramente que só nos importa a crença na lei, sem esta confiança simplesmente cada um faz da própria vontade a lei a ser seguida. A confiança na lei, no entanto, não se compra, nem se impõe a marretadas. O Estado de Direito e o cumprimento ao seu “império da lei” (princípio da legalidade) decorre da legitimidade que se verifica (ou não) no Estado Cibernético.

A confiança no Estado de Direito derruba a síndrome da impunidade, combatendo a corrupção, o desleixo político, a incapacidade sistêmica de resolver os mais graves problemas sociais, como das drogas ilícitas e o analfabetismo funcional. O povo cumpre a lei em que vê alguma lógica, que lê e compreende sua redação – aí sim deposita sentido e aprova seu conteúdo. Do contrário, a incapacidade de acreditar no sistema se revela como o celeiro de Al Capone, Beira-Mar e Cachoeiras, dentro e fora do Estado.

O Estado Cibernético em que o povo legitima a ordem jurídica não é, portanto, um Estado-Força, em que se aplica indiscriminadamente a força, a coerção, a violência institucional. É um tipo de Estado-Inteligente, pois as ações políticas e as medidas institucionais devem ser as mais ajustadas às necessidades; juridicamente, haveria um equilíbrio entre meios e fins, entre a celeridade política e a segurança jurídica.

O sistema político-institucional, como entrada (input) e saída (output) de um amplo sistema que comunica e relaciona necessidades e oportunidades, meios e recursos, ainda nos coloca duas questões complementares: há adesão popular ao modelo político? O desempenho do Estado reflete a possibilidade de influência dos cidadãos? A primeira questão traz a armadilha da política brasileira, ao se confundir Estado e Governo. Com esta confusão, não é ocasional que alguns governos adotem o Estado para si, corrompendo o Estado para manter e inflar o poder do seu governo. A segunda questão expressa o populismo (aliás, em toda América Latina), como resposta política inerente à dominação tradicional, e que decorre da confusão entre Estado e Governo.

O mesmo modelo do Estado Cibernético nos permite ver outras questões de fundo da democracia nacional. Como forma de governo, a exemplo do mundo civilizado, no Brasil nós encontramos mecanismos para dialogar racionalmente com a meritocracia (governo dos melhores)? Primeiro que nosso modelo político não reflete os maiores dilemas sociais – históricos – ao coibir a entrada (input) de muitos dos melhores cidadãos, dos mais aptos e capazes, de maior mérito, nos sistemas funcionais da vida pública.

O Estado que é refém do governo, em que não há suficiente profissionalização da administração pública, ainda funciona na base da lógica amigo/inimigo: “aos amigos, tudo; aos inimigos a lei”. É óbvio que este sistema não pode prosperar, afinal quase nunca os melhores estão entre os amigos; os melhores, por serem melhores, ameaçam continuamente o poder estabelecido. Assim, ao invés da meritocracia estimulada pelo Estado Cibernético, temos o efeito contrário, com o governo dos piores, acomodados e cínicos, neste conhecido governo dos medíocres (oclocracia).

Em todo o mundo, criou-se, a partir de alguns dos problemas mais complexos da vida moderna, uma interdependência crescente entre as áreas do conhecimento porque a solução de muitos problemas não é mais uma questão puramente política, ou de solução simples, exigindo-se a participação determinante de especialistas, cientistas e experts.

No Brasil, no entanto, a necessidade de um governo técnico não avança no sentido de uma profissionalização, ficando a cargo do chefe do executivo sua contratação ou não. A expertocracia (aliança entre saber e poder) é uma exceção, como vemos na assessoria técnica dos ministros do Supremo Tribunal Federal. A política, grosso modo, ainda se vê tutelada, marcada pelas deturpações históricas na gestão e domínio do Estado. Enquanto muitos países conseguem gerir a representação política com a participação popular (Suíça), no Brasil empregamos o populismo de direita e de esquerda. A assistência social é importante no combate da miséria absoluta, mas não pode ser moeda de troca política.

Países conseguem organizar um sistema político “proporcional”, articulando eleição livre com indicação partidária de experts¸ sábios, intelectuais representativos da massa crítica nacional (Alemanha), ao passo que no sistema político brasileiro existe umagerontocracia, como governo das “velhas raposas”. Em Rondônia, pratica-se a expertocracia com Mangabeira Unger.

Por fim, cabe frisar que o Estado Cibernético tem na razão – como superação ideológica – o mecanismo político mais promissor da organização e do controle social. Um Estado Cibernético tem leis mais racionais, legítimas, inteligentes, equilibradas e menos suscetíveis aos interesses privados; do mesmo modo que as leis racionais não dispendem de tanta pressão, coerção para sua fixação e cumprimento. A lei racional implica em compromisso social, até que porque esta lei reflete uma longa reflexão social.

A lei racional, proveniente do Estado Cibernético, revela que o processo legislativo envolveu muito mais sabedoria, discussão democrática e que sua determinação é consensual, articulada entre os grupos interessados. A lei racional é baseada no diálogo político e este é o maior indicativo da superioridade do Estado Cibernético. Na teoria vai bem, na prática temos o que foi diagnosticado para o caso brasileiro.

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

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