Sexta-feira, 31 de agosto de 2012 - 14h09
Dia 29/08, a presidência da Repúblicasancionou uma lei que deveria ser um marco na educação pública. Não se terá uma revolução com esta iniciativa, mas poderia sinalizar algumas mudanças. Na verdade, continuamos patinando em termos de reformas educacionais – até porque hoje seria necessária uma revolução, radical, impactante, “antes nunca vista na história desse país”.
A lei institui o sistema de cotas raciais e sociais para as universidades e institutos federais de todo o país. A lei prevê a reserva de 50% das vagas para quem tenha cursado o ensino médio na rede pública, distribuindo as vagas entre negros, pardos ou indígenas. O maior problema, não previsto em lei, será associar inclusão e qualidade do ensino.
Nos EUA, o sistema de cotas, no longo prazo, produziu uma classe média negra. Os resultados foram observados com os filhos dos alunos que tiveram o ingresso institucional. Em geral, os cotistas e bolsistas não alcançaram resultados educacionais muito vultosos, nada que merece um destaque significativo. Seus filhos, porém, cresceram sob a orientação de pais que já tinham tido a experiência do ensino superior de qualidade.
Os filhos das cotas cresceram em outro contexto cultural, com pais literalmente educados, muitos com empregos melhores, alguns exercendo funções e papéis sociais relevantes. Não é determinante, mas é óbvio que crescer em meio a um ambiente cultural estimulante faz muita diferença na formação da pessoa. Pais educados, cultos, que se expressam bem, que escrevem, leem e compreendem os signos do mundo moderno, transmitem com muito mais sucesso o “seu próprio sucesso” a seus filhos.
Mas, será que lá simplesmente se colocou as pessoas dentro do ambiente universitário, por meio da letra fria da lei? É claro que não. Todos sabem que, primeiro, as cotas são um paliativo e, segundo, devem vir assistidas de mecanismos de incentivo à permanência do estudante. Como qualquer estudante de universidade pública sabe: entrar até que é fácil, o difícil é sair. No caso das cotas criadas por lei, se não vierem acompanhadas de outros meios, muito em breve, teremos um altíssimo índice de desistência dos ingressantes.
Sinceramente falando, será que os professores farão algum tipo de nivelamento por vontade própria? Teremos mais recursos, incentivos, bolsas para tutores, para que alunos monitores façam este acompanhamento e auxiliem no aprofundamento cultural dos alunos carentes? Ou será que vamos aprimorar os “amigos da escola” na universidade federal, ou seja, mais um faz de conta em que “alunos dão aula para outros alunos”?
Especialmente depois de uma greve de 100 dias, duvido que a recepção dos ingressantes no sistema pelas cotas seja a mais agradável. Penso que este foi o pior momento para se sancionar medida tão complexa como esta. A truculência do governo com os professores deixou cicatrizes bem evidentes, profundas.
Para que o leitor saiba que sempre defendi o sistema de cotas, basta que diga que já derrubei judicialmente dois concursos públicos, porque seus editais não previam a reserva de vagas – e isso depois que haviam dado posse aos aprovados. Portanto, sempre fui favorável, mas aprendi a duvidar de tudo que provem das boas intenções e do marketing governamental.
Também já trabalhei com alunos de faculdades particulares e sei bem de suas dificuldades – algo semelhante ao que se expressará com os cotistas – e por isso já me inquieto com a lei. Realmente, estou preocupado em como organizar minhas aulas: devo falar, pensar, usar textos voltados a qual das metades de alunos dos cotistas ou dos que sempre tiveram uma educação adequada? A lei pode forçar uma esquizofrenia, com duas metades de um discurso ou dois discursos sem unidade.
Engana-se redondamente quem pensa que posso dar a mesma aula a ambos os grupos. No primeiro semestre do direito, presume-se que todos buscarão saber o que são o positivismo, o dogmatismo, o monismo, o formalismo, o individualismo jurídico. Pois bem, na vigência das cotas, quando disser aos alunos que esses paradigmas estão expostos no contrato do Fausto, de Goethe, e indicar para que localizem no texto, por experiência própria, terei 50% de resultado positivo. Para ser justo com os cotistas, devo subtrair a discussão da sala de aula? Neste caso, não seria injusto com os demais, furtando-os de um raciocínio mais elaborado? E este é apenas um de muitos exemplos.
Como está organizada a lei, é apenas uma medida de impacto – e só. Em ano eleitoral, recebemos outro vazio de significado e de perspectivas para a educação brasileira. Em 2014, é mais do que provável que nós tenhamos mais efeitos pirotécnicos – ou outra greve nas federais! De fato, não se pode agradar a gregos e a troianos, mas desagradar a ambos é o “começo do fim”.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
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