Sexta-feira, 28 de setembro de 2012 - 05h07
Inicialmente, posso dizer que, no pior dos pecados, sou brasileiro demais, adquirindo a indisciplina e a desorganização. Também tenho uma característica excelente como a maioria dos brasileiros: não desisto nunca – tanto não desisto que vim parar em Rondônia. E tenho outras revelações que herdei dos avós, vindos da Espanha, nas décadas de 1920-1930: uma coisa chamada de espanholice.
É uma espécie de chatice que se herda e não se desfaz, está no subconsciente, grudada no sangue como cola que cola aço. Não que seja uma chatice insuportável; apenas essa característica meio tinhosa, birrenta, teimosa é que, por pura chatice, não larga o portador: é incurável, recorrente. A espanholice é um vírus cultural crônico, mas não é letal, não é um visgo que provoca asco, apenas identifica quem o tem.
Em todo caso, a espanholice talvez não me fizesse tão brasileiro, se pensarmos que o brasileiro é marcado por outra curiosidade de nossa cultura: a cordialidade. Também não sou brasileiro do ponto de vista genético: não sou filho da miscigenação, porque os quatro avós vieram da Espanha.
Quanto à famosa cordialidade é preciso uma distinção, uma vez que há dois sentidos e os dois fazem parte da cultura nacional. O primeiro sinônimo de cordialidade é a ideia simples, do senso comum, de que somos hospitaleiros, recebemos bem todo mundo, até porque hoje a miscigenação cuidou de mesclar a todos. O sincretismo religioso ainda se somou à hospitalidade para gerar um forte sentido de tolerância – é claro que há racismo e hipocrisia, especialmente quanto às religiões de origem africana, mas nada que se compare à intolerância cultual, religiosa.
O segundo sentido da cordialidade lembra que somos bons hospedeiros, e não exatamente hospitaleiros. Como hospedeiros, guardamos um fel em nossas relações sociais, pois vestimos uma carapuça, uma máscara social que é cínica em relação aos objetivos e intenções reais, quando se mostra uma cara, uma aparência de relacionamento, e na verdade temos em nós o seu oposto. Num exemplo simples: o empregador que oferece churrasquinho a seus empregados todo mês ou que joga futebol com eles, mas não admite que falem de horas extras, aumento salarial, férias. Aliás, o emprego constante dos diminutivos também nos entrega como patriotas da cartolagem social: amiguinho, cervejinha, bonitinho. Das duas uma: ou a cervejinha esconde o alcoolismo, porque são cervejinhas todo santo dia, ou o bonitinho é o feio bem embalado.
Este suposto apaziguamento social, que mascara sentimentos de interação social, atualmente esconde uma verdadeira guerra civil, um caos social que vitima sobretudo jovens e adolescentes. Em outro exemplo mais leve, havia um quadro na TV em que uma loira norte-americana muito bonita dizia: “brasileiro é tão bonzinho”. Na verdade, toda confusa com a língua, queria dizer o contrário, porque os amiguinhos brasileiros estavam prontos para devorá-la. Este segundo sentido todos nós podemos combater, começando por registrar nossos funcionários, cumprindo todos os direitos trabalhistas e demais obrigações sociais.
Ocorre que nesses casos faz-se presente a consciência achatada do colonialismo, em que o empregador se porta como senhor da lei, dono das relações sociais. Evidentemente que o mundo não é bem assim e por isso a Justiça do Trabalho está até o teto de processos – tenho dois por lá, um deles por dano moral.
O sentimento senhoril do passado escravista ainda vive em muitos filhos bem mais jovens das chamadas “famílias antigas” – e o pior é que nem sabem, porque não conseguem abaixar a cabeça empinada para ver a sujeira do umbigo. É óbvio, mas vale dizer que a cultura brasileira precisa de empatia, não de empáfia.
A única coisa boa nesse tipo de cordialidade é a recusa aos esnobes, ser contrário à afirmação do distanciamento das classes sociais, enfrentar com bom humor a superioridade econômica. Não há coisa mais chata do que um sujeito esnobe, afetado, metido, vestido com uma suposta superioridade econômica, cultural, física. Como me disse uma amiga, há tempos: quando se convive realmente com gente grande, como o gênio Florestan Fernandes, você aprende a ver o seu tamanho e lugar respectivos. Dessa brasilidade eu passo longe.
O complemento dessa cordialidade se verifica no nefasto “jeitinho brasileiro”, uma gambiarra cultural em que se quer levar vantagem em tudo – apelidado de “a lei de Gérson”, por causa de um comercial de TV gravado com o ex-jogador. Este jeitinho nada mais é do que a corrupção, porque levar vantagem sobre a lei, o certo, correto, justo não pode ter outro sentido. O indivíduo leva vantagem não devolvendo o troco recebido indevidamente – e obrigando a funcionária do caixa a pagar com seu salário – ou vendendo o voto, a vontade, a verdade. Desse modelito social também estou longe, como se diz, “sai fora”.
Uma das sensações mais legais que tive na pequena viagem que fiz à Espanha, em 2010, foi ver no rosto das jovens mulheres espanholas um ar de satisfação não porque eram belas, jovens, muito bem arrumadas, pintadas, mas sim porque sabiam que eram inteligentes, competentes, capacitadas pessoalmente, profissionalmente. Gostaria muito de ver isso nas brasileiras mais vezes do que de costume, gostaria de ver nossa consciência não limitada à estética e nem o olhar masculino treinado a ver apenas uma parte do corpo feminino.
Nada contra a estética, adoro o samba e as sambistas. Mas é preciso olhar para além da maquiagem, da sensualidade; a vaidade em excesso facilmente degenera em vulgaridade, do tipo periguete. Falando sério, que tipo social, que qualidade humana é essa? Assim, ao lado da corrupção, o apelo à sensualidade exagerada – tipo Gabriela, bobagem e canela – é o que mais alimenta nossa crônica cordialidade. Nada é mais satisfatório do que conversar com uma pessoa inteligente, seja homem ou mulher é preciso ter verdade no que se fala.
E quase me esqueci do futebol. Sempre que posso assisto ao São Paulo. Em todo caso, aprendi a apreciar outros esportes, alguns até não recomendados para crianças. Como bom brasileiro, procuro não ser fanático, pegajoso a regras academicistas, preso às patrulhas ideológicas do tipo “isso pode, não pode aquilo” – que o digam La Boétie, Marx e Foucault.
Mas, e sempre cabe mais um “mas”, é preciso ver tudo com crítica, bom senso, capacidade criativa. Jamais vou discutir futebol ou religião, a não ser academicamente. Agora, parafraseando o antropólogo Roberto Damatta, gostaria de poder eliminar “o que faz o Brasil, brasil”. No continente de nossa cultura, as coisas ruins que deixam o brasil minúsculo têm espaço demais.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
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