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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Tortura Nunca Mais


Demorei um pouco para acreditar que estava lendo no Jornal da Manhã que em Marília moradores de rua são torturados, possivelmente, por funcionários públicos municipais. Antes de ler a matéria toda formulei a seguinte questão para mim mesmo: “Quem tortura um mendigo?”. Em seguida pensei: “Um neonazista, adorador de Hitler, do Holocausto, um desequilibrado mental, tipo psicopata, ou um agente público – via de regra um agente policial e que atua como longa manus da lei. Ou os três juntos”. Mas, estava errado no que concerne ao policial – dessa vez não era policial quem violentava a lei; supostamente, ainda está em fase de investigação, trata-se de agentes da Secretaria Municipal da Assistência Social. Certamente o caso se agrava porque é são funcionários que, em tese, foram escolhidos para lidar com esse público específico; assim como professores e médicos são selecionados em suas especialidades. Hoje, o que menos interessa é tratar do aspecto legal do crime de tortura, mas muito mais repudiar essa mentalidade grosseira, de gente asquerosa, daquele tipo que só de pensar em conviver você já sente nojo, ânsia de vômito. Sempre defendi que juízes de direito deveriam passar por rigoroso teste de avaliação psiquiátrica e de vocação, para saber realmente se o sujeito almeja o posto com consciência pública da justiça ou se só lhe interessa o dinheiro e o status. Mas atualmente vejo que todos os servidores públicos deveriam passar pelo mesmo teste. Tive professores na universidade que não se sairiam muito bem, um deles, com certeza, não sairia do Hospital Psiquiátrico se lá entrasse. Obviamente que praticavam tortura psicológica e de ordem moral e que, atualmente, renderia ações por danos morais. Em todo caso, a coisa é tão grave do ponto de vista social que servidores que fazem isso cometem o crime de atentar contra a inteligência social. Cometem muitos outros crimes de acordo com o Código Penal, mas acima de todos, este: o crime da profunda desinteligência. Trata-se, portanto, de um crime imperdoável, além de hediondo. Isso ainda quer dizer que, se o homem é caracterizado pela inteligência que o distingue de outros animais igualmente sociais, implica em dizer que a falta de inteligência diminui sua capacidade de ação e de mobilidade social. E mais: além de animal social, como as formigas e as hienas, o homem é o único animal político porque constrói, intencionalmente, um sentido de vida pública (zoon politikón); o homem é um animal fabricante (Homo faber) de instituições e de institutos políticos, vale dizer, públicos, que facilitam sua vida em sociedade.

O Homo habilispotencializou-se com o uso de instrumentos achados ou fabricados; desde muito cedo, a técnica exerceu o papel de exteriorização das habilidades globais no trabalho de fabricação-de-si e da realidade social. A técnica social é a própria política. Ao fabricar a sociedade, modificando a natureza, o homem ainda fabricou ao Outro, o-ser-diferente, como sociabilidade, coletividade, urbanidade. Portanto, para o homem, viver em sociedade não é um dado natural, como para as abelhas, mas decorre de um projeto político, de escolha coletiva, como um traço de sua teleologia (tecnologia social capaz de projetar o futuro). Logo, alguém que atenta contra a convivência, desmerecendo a urbanidade, é um claro agressor da condição humana, uma vez que degenera em seus atos a capacidade de conviver politicamente com seus semelhantes e/ou diferentes. O mendigo, no caso do agressor, é alguém (ou “algo”) muito diferente, então, pode ser massacrado (um deles está desaparecido, talvez morto). Quem mata o(a) outro(a) desse modo, porque é diferente e tem outra conotação social, distinção política ou inclinação ideológica, prova que age sem inteligência social, isto é, não é capaz de um convívio equilibrado, age como animal de rapina, predador, um megalodonte que despertou o atavismo jurássico da pré-história, incapaz de se socializar e assim tenta se impor por meios cruéis. Como tem baixa inteligência cognitiva, com forte retardo moral, para suportar esse tipo de relação social conflituosa, opta por aplicar métodos de extrema contundência, violência. É o tipo humano que os gregos antigos denominavam de aneu logou ou idiotes. Em Roma, os mendigos eram chamados de Homo sacer e podiam ser abatidos livremente. Mas, hodiernamente, os torturadores são seres abjetos, desqualificados para a vida comum do homem médio. Os torturadores são animais incapazes de desenvolver a realidade política da difícil arte da convivência e por isso abdicam da sua própria inteligência. Alguns se julgam “superiores” (como superioridade ariana ou de classe social), mas não passam de animais imbecilizados. Idiotes no passado, idiotas no presente. Leiam o livro “Nunca Mais”, de Ernesto Sábato.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Pós-Doutor em Educação e Ciências Sociais

Doutor pela Universidade de São Paulo

 

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