Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Vidas secas e vidas honestas


Essa história é comum a muitas outras, de gente que enfrenta o sol e as dificuldades, e sobrevive aos filhotes de coronéis. Mas também é diferente, porque é uma história que termina bem. Aliás, uma história honesta que termina bem, infelizmente, é uma exceção no Brasil – nem chega a ser uma iguaria.

A história de Dona Maria ou Mariquinha, para os infinitos amigos e conhecidos, começou há algumas décadas em Aracati - CE. Nasceu no tempo do lampião de querosene, das casas de palha de coqueiro, sapê e da alegria da criança brincando nas ruas habitadas somente por outras crianças. Nesse tempo não havia problema ambiental como hoje e os peixes de rio e do mar bem próximos não deixavam ninguém ter dor de fome. Nesse tempo, dizia-se que a fartura impedia que a vida maltratasse demais.

Também era o tempo de fazer labirinto, uma engenhosa construção manual sobre tecidos, em que se tece sobre o linho desenhado, recortado, desfiado a cada quatro pontos, depois preenchido, quando se torcem os fios, seguindo-se do “paleitão”, enchendo-se com outro tipo de fios. Ainda se faz o caseado, lava-se, estica-se o tecido e prepara-se o fim.

É uma rotina que escraviza pelos detalhes e dores físicas. Para quem vê fazer, o labirinto lembra mesmo uma arte barroca fruto do coronelismo, em que para se agradar às sinhazinhas, sacrificava-se aos escravos e pobres.

Dona Mariquinha vive em um sobrado que, se estivesse na Rua Grande, seria um dos conhecidos Casarões. No tempo antigo, todo Casarão conheceu um senhor de poder e posses. A cidade foi construída à base da escravidão. Alguns dos mocambos do passado são sobrados atualmente.

A família vive às suas proximidades, mas também conheceu os efeitos da migração para o Sudeste. A distância e o medo de avião não permitem que viaje a São Paulo, para conhecer onde mora uma das filhas.

Dona Mariquinha não terminou os estudos escolares, mas os cabelos brancos – que não pinta porque não quer – escondem a sabedoria da vida. Aquela conhecida esperteza em ver a simplicidade que provêm das coisas complexas. Na tentativa de explicar o indizível, muitas vezes a sabedoria popular reduz o complexo a seus componentes, fracionando o problema para mexer em suas partes.

As histórias contadas por Dona Mariquinha não têm fim, porque foi testemunha da história social dessa região. Tem a felicidade de narrar o drama vivido por muitos de forma leve, compreensível a qualquer um e com uma pitada de ironia.

O Estado do Ceará é conhecido por seus comediantes, mas a história social de muitos, como a de Dona Mariquinha, não é de rir, não é uma farsa, mas também não é infeliz, sem destino. Esta, como algumas poucas, é uma história feliz, porque é honesta, verdadeira, sábia na simplicidade. Pela naturalidade, é uma história que dá vontade de acompanhar, contar várias vezes.

Prof. Dr. Vinício Carrilho Martinez
Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoSexta-feira, 27 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

 Toda tese é uma antítese

Toda tese é uma antítese

A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes no Brasil são racistas.          Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas.          É a nossa história, da nossa formação

Emancipação e Autonomia

Emancipação e Autonomia

Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a

Gente de Opinião Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)