Terça-feira, 10 de junho de 2014 - 07h15
Felipe Azzi
ILHA DAS FLORES, o nome já bem diz, é o recanto florido que o Artífice de tudo premiou com as belezas naturais que ostenta. Ironicamente, não é uma ilha. Mais parece um promontório avançado na curva pouco acentuada do rio Guaporé, em espécie de enseada fluvial, de onde se descortina, na margem oposta, a majestosa floresta guaporense.
Foto do Coronel da Guarda Nacional |
Esse rincão foi, em tempos que só a saudade pode recordar, o principado particular de um dos notáveis Saldanha. Seu nome: João Batista Saldanha Guerreiro. O nome próprio tem a força do precursor do Messias, já o sobrenome revela a garra daqueles que enfrentam o combate, na primeira linha de fogo.
Filho de Mizael Mendes Guerreiro – da estirpe familiar de Antônio Conselheiro, o carismático herói de “Canudos” – e de Sinfrônia Saldanha Guerreiro, irmã do Coronel Paulo Cordeiro da Cruz Saldanha. Laços familiares aguerridos, mas bem formados na disciplina, deram-lhe a diplomacia que se tornou peculiar no relacionamento com os seus semelhantes.
Aos vinte anos de idade, veio auxiliar o Coronel Saldanha, seu tio, na administração da Guaporé Rubber Company, exercendo vários cargos e funções, chegando ao posto de comando das embarcações dessa empresa.
Quando o Coronel Saldanha adquiriu a fazenda Ilha das Flores, no médio Guaporé, coube a João Saldanha a administração dessa propriedade que, com o passar do tempo, tornou-se o seu “xodó”, vindo a ser dela proprietário, por dádiva de seu tio coronel.
João foi comerciante, pecuarista e, especialmente, seringalista, movido pela vocação natural da região. Prefeito de Guajará-Mirim, por duas vezes, em 1954 e 1958, com mandatos circunscritos, de 01/06/54 a 11/04/55 e de 05/11/58 a 25/05/61. Recuperou praças, implantou escolas, abriu avenidas urbanas, construiu o primeiro estádio de futebol com pista para a prática de atletismo (onde hoje se encontra o prédio da Prefeitura Municipal). Junto com o seu irmão Paulo Saldanha Sobrinho, acalentou o sonho de uma estrada que chegasse a Cuiabá, passando pelo Igarapé Palheta, de acordo com antigo projeto do Marechal Rondon. A atual BR-364, seria a realidade alcançada, anos mais tarde.
Fundador e Presidente do Aeroclube de Guajará-Mirim. Como piloto de aeronaves de pequeno porte, conseguiu a façanha de trazer, sob pilotagem pessoal, 3 aeronaves para a cidade. O que, na época, muito impressionou a população nativa.
Onde houvesse um desafio inovador ali, certamente, estava a têmpera Saldanha. Juntamente com alguns amigos de idêntico pensar, fundou o Lyons Club de Guajará-Mirim, entidade de serviços pioneira na região. Também foi pioneiro no serviço de radio difusão, transmitindo os jogos de futebol locais, em linha direta, para a cidade.
João – como de resto todos os Saldanha – dominava a sua espiritualidade, tornando-se espirituoso. Brincalhão ao extremo. Mesmo nas coisas sérias, sempre colocava a sua pitada de galhofa, então os espíritos eram desarmados. Por isso era muito querido por todos os que o conheceram.
Dinâmico, não digeria protelações. Fato emblemático o envolveu com o recentemente nomeado Governador do Território Federal do Guaporé, na época, o Coronel Paulo Nunes Leal que, chegando de surpresa à cidade o encontrou manejando um enorme equipamento de terraplanagem, do que resultou o seguinte diálogo:
– Estive na Prefeitura e disseram-me que o Prefeito estaria aqui, acompanhando a abertura desta via pública... Onde está o Prefeito? Inquiriu o Governador.
– Na sua presença, senhor!... Sou eu, João Saldanha, o Prefeito. Agora entendo o sobrevoo do avião. Disse João, mastigando um broto de capim “mucura”.
– O senhor está brincando? Sou o novo governador, Paulo Nunes Leal... Não acompanha notícias pelo rádio?
– Acompanho todo o noticiário, tanto que a minha demissão já foi solicitada por telegrama, tão logo soube de sua posse, entreguei o cargo. Afirmou João, tirando o boné para acalmar disfarçada coceira na cabeça.
– Mas como?... O senhor não é o patrolista? Curioso, perguntou o Governador.
– No momento, sou!... Para que os trabalhos não sofressem solução de continuidade, assumi a tarefa, mesmo sendo o Prefeito, pois o patrolista está acamado com maleita das brabas. Disse João com a tranquilidade dos desapegados a importâncias.
João pediu um minuto ao Governador e subiu na máquina para desligá-la. Saíram, em seguida, a caminho do prédio da Prefeitura. Mas o diálogo prosseguiu:
– Então o senhor é o Prefeito de Guajará-Mirim!... Um Saldanha... Por acaso é parente do Coronel Saldanha? – Averiguador, quis saber o Governador.
– Sobrinho, de primeiro sangue!... Disse João, e completando:
– Senhor Governador, queira me desculpar pelo macacão e pelo boné, na recepção de sua pessoa... Pediu João, com uma advertência embutida – mas, o senhor bem que poderia ter avisado da visita!
– Deixe disso, homem!... A roupa não faz a competência... Mas, diga-me João, é difícil pilotar essa geringonça?
– Difícil não é, mas é preciso muita ciência no pensar e mãos certas nos “manches” de comando!... Esclareceu João, exibindo os seus conhecimentos de pilotagem.
Já adentrando à Prefeitura, o Governador parou, olhou em derredor, tocou o braço de João, lambuzado de graxa, para estipular a sua decisão:
– Antes do cafezinho, quero que saiba que o senhor está confirmado e mantido no cargo!...
Entraram, então, na Prefeitura, onde, certamente, conversaram sobre projetos da Municipalidade, verbas federais disponíveis e prioridades governamentais. De positivo, nasceu uma coerente identificação de princípios públicos, que marcaria a caminhada dos Saldanha na Política Regional.
Continua...
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