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A LEI COMO MEIO E NÃO O FIM DA JUSTIÇA


Há algum tempo li na Revista Veja um artigo festejando o lançamento do livro denominado “O Estado de Direito e Jurisdição Constitucional”, editora Saraiva, autoria do Ministro Gilmar Mendes, do STF, enfatizando caber ao Juiz julgar tão só cumprindo a lei. E, a propósito do contexto da obra, frisou: “ainda há juiz em Brasília”.

Pois bem. Ao contrário da euforia do articulista, vejo com desalento essa visão restritiva de que o Juiz só pode elaborar a justiça na delimitação da lei. É uma visão obtusa, conservadora e insensível acerca do senso de justiça que se põe em confronto com a dinâmica do fato social, isto é, a evolução das relações da sociedade imantando moderna concepção dos fins da justiça. Decerto a Lei constitui o meio, o balizamento dos limites do direito em sua construção dialética, mas não encerra os fins do direito e da justiça em sua concretude. Hoje, o Juiz, o Poder Judiciário enfim, vivem uma responsabilidade ímpar, a de entregar uma prestação jurisdicional justa, embasada não apenas na lei, mas, também, na sensibilidade do julgador. Disso decorre não se poder condicionar o exame do direito, finalidade da Justiça, à mera aplicação da lei.

Demais disso, a bem dizer, as leis nem sempre são elaboradas com senso ético e respeito a princípios fundamentais do direito e da justiça.

Essa visão de que ao juiz cabe tão só cumprir a lei é retrógrada. Ora, se tudo evolui neste planeta, desde os costumes, a ciência, a tecnologia, a medicina, a astrologia, a sociologia, etc., porque a Judicatura do século 21 deve conservar a mesma visão do juiz do século 19?

Aliás, o Ministro Orozimbo Nonato, do STF, em meados do século passado pregava essa acomodada concepção de que o Juiz deve tão só aplicar a lei. Para a época em que direito era um tanto estigmatizado, é até compreensível, pois se vivia uma sociedade de rompante aristocrático, elitizada e dominante, e as leis traziam o seu reflexo, por isso as minorias, as mulheres e segmentos sem voz, sofriam restrições de direito. Dessa sociedade, advinham os magistrados de então trazendo o seu perfil acerca da concepção de justiça.

Com efeito, ao juiz moderno, como mediador da efetivação do dever e dos fins do Estado, cabe modelar o direito ao caso concreto. A justiça, como se sabe, constitui em si o eixo da Democracia, não um eixo imaginário, mas o sustentáculo do estado de direito, pressuposto intrínseco do regime democrático.

Hoje se percebe na magistratura, no Juiz da atualidade uma visão mais abrangente da concepção de Justiça.

Decerto não estou a dizer, nem me simpatizo com a ideia do segmento chamado Juízes para a democracia. Como já adiantei a Justiça e o Estado de Direito são pressupostos da Democracia. Logo, adjetivar o exercício da magistratura de uma destinação já inerente aos seus fins, parece-me exótico e equivocado, pois, bem se sabe não haver democracia sem a justiça e vice e versa, por isso não há lugar a esse rótulo.

Também não vejo razoabilidade na adjetivação que se pretende atribuir ao direito como alternativo. Ora, o direito é um ente abstrato e só pode ser adjetivado no tocante à área a que se destina disciplinar ou a impor regras de especialidade: direito criminal, direito civil, direito do trabalho, direito eleitoral, etc. Em relação à concepção de garantia das regras da vida do homem em sociedade, não há se falar em alternatividade, se o direito é um só. A sua materialização é que depende do tempero sociológico na aplicação da justiça.

Com efeito, o juiz não é certamente esse cético de que estaria a cogitar, como nos fez crer a matéria publicada, a obra citada, mas aquele de que fala Mauro Capelletti, vale dizer, o Juiz que interpreta a mensagem da lei e dela extrai a verdadeira concepção de Justiça.

A bem dizer, o Juiz não pode deixar de elaborar a Justiça, mesmo quando não haja lei definindo determinado direito que pode se encontrar subentendido nos caracteres do fato social, nos princípios do placet constitucional e no direito natural.

Sucede que na abrangência dos postulados constitucionais, no estado de direito, encontra-se subentendida implicitamente na ordem constitucional a outorga ao judiciário, em razão de sua finalidade, poder que lhe permite julgar e decidir questões de relevante repercussão, objeto de fato notório e direito imanente. Isto é, o juiz não pode deixar de decidir questão razoável que lhe são submetidas cujo direito transcende a evidência, ao pretexto da deficiência ou inexistência de previsão em norma específica.

Em face desta concepção, é que não vejo bom senso nem razoabilidade nessa visão de que o juiz nada pode decidir além da letra abstrata da lei, que, por vezes é capenga, controvertida, injusta e imoral. A bem dizer, isso ocorre em razão de que quem a faz nem sempre está imbuído de juízo ético e bom senso, quando não lhe implanta uma dose de conveniência atropelando princípios e permeando-a de volúvel ambiguidade. Cabe, então, ao juiz comprometido com o espírito de justiça, como criador do direito dinâmico em concretude, interpretar essa norma abstrata modulando-a, aos fins da justiça em caso concreto, ciente de que a lei é o meio e não o fim do direito. Em face de tal circunstância, deve em determinados casos abstrair o espirito da norma não devidamente materializada no seu contexto, mas subsumida na velada vereda constitucional como fundamento dos fins do Estado. Decorre, então, que o verdadeiro sentido da justiça é a moldura do direito a realidade do fato social.

A propósito, para reflexão, convém rememorar a exemplo, a ambiguidade contida na Lei Complementar n. 135/2010, chamada de “Lei da Ficha Limpa”, inserida pelo Senado da República, ao que parece, como alhures foi dito, por mera conveniência, que resultou, como se sabe, na dificuldade de compreensão, inclusive no Supremo Tribunal, que divagou em longa discussão para definir se a expressão: “que for condenado”, inserta no texto da lei, estava a dizer de quem já tivesse condenação, ou quem fosse condenado a partir da lei, para, então, se ver caracterizada a condição de inelegibilidade. Essa discussão acabou beneficiando muita gente que estaria fora das eleições de 2010.

Pois bem. Não se pode ignorar que muitas leis em nosso país estão a exigir do juiz verdadeiro exercício de formulação do direito concreto fundado em princípios basilares. Por isso ele não pode agir como mero burocrata, tampouco deve atropelar o bom senso e pretender se transformar em fonte de direito alternativo.

Outra questão que sempre reclamou o bom senso e uma reflexão deontológica do magistrado é a chamada presunção de inocência, a meu ver, vulgarizada. Ora, esta lá no inciso LVII do artigo 5º da Constituição da República: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Pois bem. A norma constitucional é de reluzente clareza: não se terá como culpado aquele condenado em sentença penal até o seu trânsito em julgado. Isto é, a questão está restrita à matéria penal, conquanto se tenham insistido em generalizar, a fim de estendê-la ao processo eleitoral, ao administrativo, etc.

Sobre a matéria, fruto de velada discussão, há tempo escrevi dizendo não ver complexidade no fundamento da norma constitucional, nem razoabilidade nessa pretensão de abrangência que se pretendeu atribuir-lhe. Sem embargo da evidente aberração de seu contexto, por considerar alguém que, submetido ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa, mediante o amplo exame da prova do fato criminoso e, afinal condenado em duplo grau de jurisdição ou em Juízo Colegiado, como presumivelmente inocente e não culpado. Em verdade, e a contrário senso, nessa hipótese a presunção deve ser invertida, isto é, de culpa e não inocência.

Contudo, malgrado a minha perplexidade frente à norma, enfatizei, no trabalho que publiquei a evidência da restrição da norma ao direito criminal, pois entendo que a intenção do legislador constituinte, ainda assombrado com o regime de exceção, foi velar o direito de ir e vir.

Em consequência, sempre defendi não se aplicar o princípio da presunção de inocência ao direito eleitoral.

Com efeito, questões desse jaez exigem o bom senso do juiz ao interpretar a norma, harmonizando-a às demais e a todos os princípios constitucionais em verdadeiro exercício de modulação do direito à lógica jurídica.

Disso decorre a inconveniência da apologia à tecnocracia do juiz escravo da lei, como o ideal, malgrado sua insensibilidade frente os fins da justiça.

O grande jurista Piero Calamandrei dizia que juiz insensível e que se acha sobrenatural, inatingível e intocável pela miséria desta terra, ofende a seriedade da magistratura.

Em conclusão, a evolução científica e da sociedade globalizada em contraste com o declínio ético moral que implanta uma inversão dos valores da pessoa humana, tutelando a conveniência, o egoísmo, os interesses escusos e a satisfação da vaidade não permite ao julgador folgar-se numa visão meramente legalista sem projetar-se na visão sociológica e filosófica do direito e da justiça.

Eliseu Fernandes de Souza

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