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A insegurança nuclear no Brasil – até quando?


Parte do material furtado foi achado em ferro velho. Foto – Olavo da Silva/CNEN - Gente de Opinião
Parte do material furtado foi achado em ferro velho. Foto – Olavo da Silva/CNEN

Até hoje a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) não divulgou o documento com a “descrição completa” do episódio e “das ações que foram adotadas, inclusive detalhes técnicos de interesse público”, relativos ao furto de cinco recipientes contendo colunas geradoras de radioatividade, levados há mais de um mês de uma picape, na cidade de São Paulo (30/07/24), como prometeu oito dias depois, quando encerrou o monitoramento do caso. O título acima é de artigo do Professor Associado 3 do Instituto de Energia e Ambiente da USP, Célio Bermann, Doutor em Engenharia Mecânica na área de Planejamento de Sistemas Energéticos que, a partir de mais uma saga atômica no Brasil, denuncia a preocupante insegurança no transporte de materiais radioativos e os riscos pessoais e coletivos decorrentes da falta de controle dessa atividade.

O caso revelou falhas graves no sistema de transporte e regulamentação desses materiais perigosos e demonstrou a incompetência da CNEN, na demora na divulgação dos fatos, na falta de clareza que gerou muitas dúvidas e incertezas, mostrando incapacidade para desempenhar seu papel de garantir a segurança das atividades atômicas no Brasil. Importante registrar que sumiços de fontes radioativas não é raro em nosso país. Em 2023, duas cápsulas, cada uma com 8 g de urânio enriquecido, usado no fabrico de elementos combustíveis para as usinas atômicas de Angra, sumiram na Fábrica de Combustível Nuclear, em Resende (RJ). Até inquérito policial foi instaurado, mas, passado um ano, não se sabe o resultado da investigação. Na época, a CNEN disse que a liberação do conteúdo “não acarretaria danos radiológicos à saúde de um indivíduo", mas havia "possibilidade de risco químico, associado à natureza tóxica dos compostos presentes", provocar danos físicos, como dermatite.

No ano passado, outros eventos funestos provaram falhas críticas nos protocolos de segurança, relativos ao deslocamento e guarda de material radioativo. Onde não existe transparência vigoram as especulações. Como no Rio de Janeiro antes, em São Paulo a notícia do material à deriva causou muita inquietação. Um temor justificado, já que é habitual o setor nuclear minimizar o potencial do perigo que envolve seus acidentes e extravios de produtos radioativo. O artigo do prof. Célio aponta várias contradições do episódio paulista, criticando a CNEN por ter demorado 5 dias para comunicar o roubo, numa nota que indicava “tratar-se de material representando risco radiológico muito baixo para a população e o meio ambiente”. Mas ao mesmo tempo alertava que “a manipulação inadequada pode vir a causar danos à saúde”

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A íntegra do artigo do prof. Célio Bermann está no blog da Tania Malheiros https://taniamalheiros-jornalista.blogspot.com/2024/07/a-inseguranca-nuclear-no-brasil-ate.html e no site da Articulação Antinuclear Brasileira (AAB) https://brasilantinuclear.ning.com/

Abaixo reproduzimos o artigo. 

 

A insegurança nuclear no Brasil – até quando?

Célio Bermann*

 

Enquanto o roubo de uma picape Saveiro que transportava cinco unidades de blindagens de geradores com as fontes radioativas, está se transformando numa angustiante sucessão de notícias sobre os destinos do material radioativo, amplamente noticiado neste BLOG pela jornalista Tania Malheiros, várias questões devem ser levantadas.

A começar pela quantidade de unidades que estavam sendo transportadas. A primeira informação era que haviam quatro unidades. Mas depois a nova informação mais detalhada indicava que se tratavam de cinco unidades, sendo quatro de 99Mo/99mTc já utilizadas (exauridas), e uma quinta contendo uma dose de 27,9 mCi de atividade do gerador de 68Ge/68Ga, ainda a ser utilizada,

A primeira questão é sobre as condições de transporte de materiais radioativos. Conforme o boletim de ocorrência do caso, lavrado no 49º Distrito Policial de São Mateus, o motorista da picape alegou que estacionou o veículo na noite de sábado (29) em frente a sua residência, na Rua Félix Bernadelli, no Jardim Bandeirante, na Zona Leste de São Paulo. O roubo do veículo foi no domingo, dia 30 de junho. O motorista do veículo deu-se conta do roubo apenas ao acordar na manhã do domingo, e foi responsabilizado por não ter deixado o veículo com o material no IPEN (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), localizado no campus da USP no Butantã.

O motorista da Saveiro é funcionário da empresa de transporte MEDICAL ALD (Medical Armazenagem Logística e Distribuição Ltda), que utiliza um veículo como a Saveiro, que não possuía nenhuma forma de segurança para evitar roubo, nem tampouco num eventual acidente de tráfego. Apesar dessas fragilidades, e do fato do transporte ser feito por apenas por um funcionário, a Medical ALD alega ser regulamentada pela CNEN e ANVISA. De fato, a CNEN afirma que o cadastro da empresa transportadora está regular junto ao órgão regulador, estando autorizada a realizar operações de transporte de materiais radioativos.

Quais são os critérios que a CNEN utiliza para regulamentar as atividades de transporte, e que permitem tais fragilidades? Com certeza, não devem ser os critérios definidos pelo Código de Conduta em Segurança de Fontes Radioativas da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA), que preconiza a utilização de veículos dotados de proteção para suportar acidentes e define a necessidade de mais de um funcionário no transporte para evitar exaustão de um só indivíduo na condução do veículo.

E com que base a CNEN responsabiliza o motorista por “imprudência”, quando a empresa de transporte parece não oferecer treinamento para o transporte apesar de contar com o aval da CNEN, e prefere ter apenas um motorista para o transporte, o que reduz seus custos na prestação dos serviços de transporte de material radioativo.

A segunda questão é sobre a demora no tempo para que o fato fosse notificado pela CNEN. Embora o roubo tenha acontecido no domingo (30/6) a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), só divulgou uma pequena nota sobre o caso na última quinta-feira (4/7).

Porque esta demora? Talvez com a finalidade de evitar um pânico na população que mora na região do roubo? Demora que foi acompanhada por uma deliberada omissão da grande imprensa que se eximiu de tornar público o ocorrido.

A CNEN, órgão vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, veio a público para informar que ““o material radioativo furtado com o veículo estava acondicionado em embalagens de chumbo blindadas para evitar irradiação no meio ambiente”, alertando que “a manipulação inadequada pode vir a causar danos à saúde”, orientando que, uma vez encontrando as fontes radioativas, havia a necessidade de manter distância segura e que fosse contatada imediatamente a Comissão e também a Polícia.

Ao mesmo tempo a CNEN não divulgou as características do veículo e indicava que não havia riscos pois “essa fonte, por sua baixa atividade, se enquadra na categoria 4, representando risco radiológico muito baixo para a população e o meio ambiente”.

Vamos aos fatos!

As unidades de blindagens de geradores com as fontes radioativas são latas ou baldes que contém o material radioativo acondicionado por embalagens de chumbo. Se estas embalagens forem abertas, quem tiver contato tem risco de desenvolvimento de câncer e, em alguns casos, esse contato pode ser letal.

Isso porque as chamadas unidades de blindagem contendo 99Mo/99mTc já utilizadas (exauridas) são resultantes do processo de conversão do Molibdênio (99Mo) que, quando exposto em exames de diagnóstico de câncer utilizado como contraste, é transformado em uma segunda substância: o Tecnécio (99mTC). Nos exames, o material é manipulado antes e, só depois de ser transformado, é que o paciente tem contato. Por isso, não há risco à saúde. O problema é que a substância de origem, o Molibdênio (99Mo), é radioativa e perigosa para à saúde, e a reação no processo de exposição para a obtenção do Tecnécio (99mTC) pode não ter sido completa.

Isso explica os cuidados necessários observados quando na última sexta-feira (5/7) policiais do 49º Distrito Policial de São Mateus, em São Paulo, encontraram a primeira unidade violada num desmanche de veículos roubados no Jardim Marilu, Zona Leste, onde também foi encontrada depenada a própria picape de transporte, a polícia isolou a área por treze horas enquanto uma equipe de Produtos Perigosos do Corpo de Bombeiros, técnicos da CNEN e técnicos do IPEN analisavam o material encontrado utilizando trajes de proteção à radiação (Tyvek) que poderia alcançar altos níveis pela eventual presença da substancia Molibdênio no material definido inicialmente como exaurido.

Entretanto, uma questão grave é que a primeira unidade foi encontrada vazia, sem o 99Mo/99mTc, pois só o balde utilizado para transporte do material radioativo e sua tampa foram encontrados.

Da mesma forma, na tarde do sábado (6/7) foi encontrado em uma loja de baterias na Avenida Itaquera, 2753 - Jardim Maringá, na zona leste da cidade, mais um desses baldes, também violado e sem a substância radioativa, junto a peças de chumbo utilizadas para a blindagem.

Ou seja, este material radioativo denominado como exaurido pela CNEN ainda não foi encontrado!

E ainda, contrariamente ao que supõe a polícia, em suas manifestações à imprensa, o furto pode não ter sido feito por ladrões que desconheciam a natureza do material que estavam furtando. Pelo contrário, trata-se de um material que ainda pode ser processado e convertido em radioisótopos para variadas finalidades, incluindo objetivos criminosos que podem pôr em risco a segurança e saúde da população.

Todavia, a questão é ainda mais grave é na unidade de blindagem que contém o 68Ge/68Ga. O Germânio (68Ge) é um elemento químico radioativo que se transforma em Gálio 68 (68Ga). Nessa transição, feita em laboratório, são dispersadas várias partículas radioativas. Ele é usado como contraste em exames de diagnóstico por imagem para câncer de próstata, metástase do câncer de próstata e linfomas.

Segundo as informações da Medical LDA, este material estava sendo transportado para ser utilizado como fonte geradora de radiofármacos nas cidades de Curitiba/PR e Blumenau/SC para uso médico. Também aqui, a preocupação com o destino final do furto deve ser destacada por se tratar de material radioativo não utilizado.

Na segunda-feira, 8 dias depois do furto ter ocorrido, a CNEN comunicou que localizou a coluna de Ge-68 (fonte) e que a coluna foi encontrada integra no mesmo ferro-velho que vendeu das peças de chumbo para uma loja de baterias em Itaquera. No comunicado a CNEN indicou que não houve rompimento do material, dispersão ou contaminação.

Quais foram as provas, as comprovações desse achado? Fotos do ferro-velho com a coluna dentro de um baldem envolvida com a blindagem de chumbo?

Podemos sim, colocar em descrédito a CNEN, por toda sua demonstração de incompetência na divulgação dos fatos - demora, insuficiência nas informações (características do veículo furtado cuja aproximação ofereceria riscos), falta de clareza ao procurar ilustrar os fatos e suas consequências.

Vale relembrar o sumiço de duas ampolas, cada uma com oito gramas de urânio enriquecido, nas instalações das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), em Resende (RJ), em setembro de 2023, fato que foi “esquecido” pois até hoje não se tem ideia do destino do urânio altamente radioativo, dada a omissão da CNEN.

Apesar do que temos levantado neste artigo, acerca das incertezas e dúvidas que cercam o roubo em questão, o comunicado do “achado” da CNEN desta segunda-feira termina afirmando: “Com isso, a CNEN encerra essa ocorrência no âmbito de sua competência”.

Como assim? Encerra a ocorrência? Considerar o caso encerrado, apesar de ainda haver material radioativo não encontrado – as quatro unidades contendo o Molibdênio (99Mo), que é radioativo e perigoso para à saúde – consideradas pela CNEN como “"sem apresentar riscos".

Por fim, a terceira questão diz respeito à ausência de uma agência de regulação das atividades nucleares no nosso país. A CNEN, criada em 1956, ainda exerce as funções de estabelecer normas e regulamentos em proteção radiológica e de ser responsável por regular, licenciar e fiscalizar a produção e a utilização da energia nuclear no Brasil.

No entanto, a CNEN também atua na operação de instalações nucleares e radiativas. Ou seja, na estrutura atual a CNEN desempenha o papel da “raposa que toma conta do galinheiro”, para utilizar uma prosaica citação popular.

Quanto tempo ainda o país tem de esperar para que a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN), criada em 15 de outubro de 2021 pela Lei nº 14.222, e regulamentada em 21 de julho de 2022 por intermédio de Decreto nº 11.142, seja efetivada para possibilitar que assuma concretamente sua atribuição de cuidar dos aspectos regulatórios relacionados ao uso seguro das radiações ionizantes?

Para tanto, é preciso ainda a aprovação dos nomes de seus dirigentes pelo Senado Federal, por meio de sabatina na Comissão de Constituição e Justiça.

Quanto tempo a população brasileira deverá ainda esperar para que o Senado Federal inclua na sua pauta um assunto cuja importância parece não sensibilizar os parlamentares?

A existência de uma ANSN vai proporcionar que normas sejam criadas para que furtos de material radioativo não ocorram mais por transporte em condições inadequadas.

É o que se espera! Fontes radioativas podem matar!

 

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CÉLIO BERMANN - Doutor em Engenharia Mecânica na área de Planejamento de Sistemas Energéticos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Engenharia de Produção na área de Planejamento Urbano e Regional pela COPPE/UFRJ e Professor Associado 3 do Instituto de Energia e Ambiente da USP.

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