Quinta-feira, 28 de julho de 2022 - 16h51
“Em nome de
interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de
pensar também é crime.” – Hannah Arendt
O Brasil
surgiu como organização política em 1549, com a chegada de Tomé de Souza, encarregado
de erguer a capital da colônia na Bahia de Todos os Santos. Seis jesuítas que
acompanhavam o recém nomeado Governador Geral representavam a ordem
eclesiástica, 320 homens em armas eram o Estado Militar, 400 degredados
formavam o povo, e a incipiente origem da sociedade brasileira não tinha mais
que mil almas.
A partir
daí, o colonizador português fez no Brasil uma vida em tudo diversa ao que
vivera até então. Ele inventou um homem novo e uma sociedade diferente, onde
trabalhavam lado a lado autoridades e povo, unidos na defesa do território e na
produção de alimentos. As hierarquias da Europa perderam o sentido aqui. Todos
precisavam de todos para sobreviver, e dessa necessidade de união para se
construir uma nova sociedade plantou-se a semente de uma inédita nacionalidade.
Essa
origem igualitária, imposta desde os primórdios pela sobrevivência, nos moldou
como povo e fez do país uma espécie de “paraíso social”, uma terra com liberdades
dificilmente encontradas em outros reinos, com eleições no nível municipal
desde a instituição do primeiro governo central, em 1549. Durante todo o
período colonial, no Império e até o presente, jamais se deixou de eleger os dirigentes
dos conselhos das províncias, liberdade que nenhum país europeu pode se gabar
de ter desfrutado tanto tempo.
A
Independência do Brasil trouxe uma Constituição de inspiração liberal,
fundamentada no chamado “poder moderador”, que livrou o país de um despotismo
comum à época, presente na maioria dos países da América do Sul. A República
foi proclamada e chegou até os dias de hoje com nossos políticos sempre
defendendo as liberdades e os princípios democráticos. Mesmo nos momentos em
que o Brasil viveu o autoritarismo, como na chamada República da Espada de
Deodoro e Floriano, na ditadura de Getúlio Vargas ou no Regime Militar de 64,
nunca tivemos no país expurgos em massa, casos de “limpeza étnica”, gulags,
ou campos de extermínio, práticas habituais em todas as tiranias da História.
Nosso autoritarismo tupiniquim jamais cerceou certas liberdades, e sempre
permitiu algum nível de oposição, concessões impensáveis em quaisquer outros históricos
regimes ditatoriais, como do comunista da União Soviética, e mesmo dos atuais
de Cuba, Venezuela ou Iran.
Entretanto,
a Constituição de 1988, marcada pela excessiva preocupação em execrar o regime
militar e limitar o poder executivo, estabeleceu uma estrutura político
partidária clientelista e desequilibrou o sistema de freios e contrapesos dos
poderes da nossa democracia, além de ter depreciado muito de nossas conquistas
democráticas. Não é por acaso que a palavra “pátria” apareça apenas uma vez no
texto constitucional - no artigo 142 - aquele que traduz a preocupação dos
militares com a defesa nacional, tema que não recebeu sequer um mínimo de
atenção dos constitucionalistas.
Alguns
efeitos colaterais desse enfoque constitucional “permissivo” nos atormentam
desde então, como a potencialização das diferenças ideológicas, a exacerbação
de sentimentos antimilitaristas e - pior - o esvaziamento do nosso regime
presidencialista. Cada vez mais fica evidente não ser possível mascarar a
verdade sob filigranas, ainda que juridicamente perfeitas: por omissão de suas
instituições, irresponsabilidade da grande mídia e desatenção do povo, a
democracia do Brasil vem sendo deturpada.
Nestes
últimos anos, assistimos a conivência corporativa do Supremo Tribunal Federal e
do Congresso, que implementaram com sucesso procedimentos dignos de um “governo
dos não eleitos”. Partidos pequenos, sem expressão eleitoral e sem poder para
imporem suas pautas, passaram a governar efetivamente, através de ações junto
ao Judiciário. Essa judicialização indiscriminada de pleitos oposicionistas
transformou o STF em um “partido togado” com poderes de executivo, capaz de
impor desde restrições ao direito de ir e vir dos cidadãos durante a pandemia,
até a proibição de ações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro. Os Juízes do Supremo têm atuado sem inibição
como delegados de polícia, abrindo processos, impedindo o acesso dos advogados
aos respectivos autos, bloqueando contas, impondo multas e censurando redes
sociais. Nosso Judiciário desconsidera o
texto constitucional, falsifica leis, cerceia liberdades fingindo defendê-las e
milita politicamente em todas as esferas. Não sem razão, existem atualmente
mais de 140 ações judiciais do STF contra o Governo, assim como se assiste uma
criminosa campanha político partidária de descrédito do Presidente e do Brasil,
inclusive no exterior, sem qualquer preocupação manifesta dos outros Poderes da
República quanto às consequências disso para a nação. “Democraticamente”, a
sociedade não esboça qualquer reação, inclusive quanto à liberação da
candidatura à presidência da república de um condenado por corrupção em três
instâncias – não inocentado – mas beneficiado por artimanha jurídica perpetrada
pelo atual Presidente do Tribunal Eleitoral.
Lutas e
muito trabalho construíram nossa república liberal. Temos uma democracia
forjada em tentativas e erros ao longo de mais de quinhentos anos, que nos
assegura hoje uma qualidade de vida desfrutada por menos de um terço da
população mundial. O Brasil é grande porque
manteve seu território, superou divergências políticas em nome da unidade
nacional, mas também pela visão das nossas elites quanto às prioridades da
nação. O país está maduro politicamente, mas usar a lei como ferramenta para
“ajustar” a democracia aos seus interesses é má fé. Abdicar de pensar e votar colocando a
ideologia à frente dos fatos, engolindo abusos e sorrindo para quem despreza nossas liberdades é crime de
lesa pátria. Porque se a batalha do século XX foi do comunismo versus
capitalismo, o embate maior do século XXI é do controle versus a
liberdade.
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