Domingo, 19 de fevereiro de 2023 - 14h32
“... A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando,
imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.”
Camões
– Lusíadas, Cap 10: Canto X
“Quintílio...devolva-me
minhas legiões!”. Este foi o lamento
indignado de Augusto, o estóico Imperador Romano no ano nove de nossa era, ao
receber a cabeça decepada de seu General
Quintilius Varus, com a notícia do aniquilamento de suas Legiões, em uma
emboscada dos germanos comandados por Armínio, antigo mercenário de Roma.
Possesso, ele rasgou suas roupas e recusou-se a cortar o cabelo por meses,
depois de saber da perda da XVII, XVIII e a XIX Legiões, cerca 20.000 homens,
1/9 da força de guerra de Roma, revés que estancou definitivamente a expansão
do Império Romano para o Leste do Reno. Augusto sabia ser impossível repor do
nada o elevado nível profissional, assim como o espírito de corpo e a mística
de uma Legião, ou seja, não se tratava simplesmente de seu exército não contar
mais com uma quantidade de homens e armas, era o prejuízo irreparável da perda
de várias forças armadas.
Até hoje, não se consegue criar soldados do nada. Na verdade,
não é possível desenvolver vínculos afetivos entre uma sociedade e seus
militares, e principalmente, entre os próprios homens e mulheres de farda, sem
que se empenhe sacrifícios, razoáveis investimentos e, principalmente, tempo.
Além disso, há que se considerar que são necessárias conexões dessa “força
militar” com a realidade político/social onde ela será empregada, sem as quais
não se consegue dar sentido ao seu desejado poder das armas. Para que
tais conexões aconteçam, é preciso também a demarcação legal da sua existência,
do emprego, das razões fundamentadoras de uma eventual ação coercitiva, assim
como da formação e capacitação de suas lideranças em todos os níveis. Ainda, os
valores que estruturam essa força armada têm que se identificar com o objeto
que justifique a sua existência, ou essa força se transforma em um simples
bando armado não confiável, amoral, aético e capaz de ser empregado em missões
de interesse outros, inclusive não democráticos.
Lembramos que a capacidade de
uma tropa pode ser definida como “a aptidão requerida a uma força para
cumprir determinada missão ou atividade”, o que só é obtido com reunião de
fatores indissociáveis, tais como: doutrina, organização, adestramento,
material, ensino, pessoal e infraestrutura. A doutrina é que,
efetivamente, faz a interface entre todos esses fatores, e que determina como
se capacita de fato uma força militar. Uma força capacitada operacionalmente –
portanto – é fruto de muitos anos de trabalho, da vivência na grandeza dos
serviços ingratos, que redundam em lideranças heroicas e arquitetam feitos
históricos, produtos da superação das duras realidades socioculturais de um
país, cimentos da coesão e da mística da tropa, imprescindíveis para sua
existência.
Entretanto,
nossos desinteressados, desinformados ou mal-intencionados políticos continuam
a desprezar a experiência e os conhecimentos universais sobre a problemática
militar, alimentando e difundindo junto à mídia, de forma recorrente, propostas
absurdas de novas destinações do Exército, da criação de uma Guarda Nacional, e
até de emendas Constitucionais visando alterar a missão das Forças Armadas. É
no mínimo suspeito constatar que cidadãos que sequer cumpriram o serviço
militar obrigatório, que desconhecem as missões, competências e capacidades
inerentes a cada tipo de Força Armada do Brasil, continuem a se arvorar de
especialistas em assuntos militares. E a declarada ojeriza e/ou “desconfiança”
dos militares, travestida com a narrativa da “despolitização” das Forças
Armadas, seja lá o que isso queira dizer com relação ao cumprimento de suas
missões constitucionais, apenas reforça o ranço político partidário dessas
propostas.
Mas,
quando o Governo se arvora em modificar as destinações das forças armadas
existentes, e em criar do nada outra instituição também “armada”, sem
motivações evidentes, a não ser alguma talvez de cunho ideológico, permanecem
sem resposta muitas questões pertinentes. Quais as missões constitucionais das
Forças Armadas que serão tornadas obsoletas, com a criação de mais uma “força
armada”, e como legalmente se vai desobrigá-las das mesmas? A ociosidade das
Forças Armadas e das Forças Policiais, pela obsolescência de algumas de suas
missões, vai implicar em desmonte de que estruturas, e no cancelamento de que
projetos? Como, em quanto tempo, onde (infraestruturas) e quem vai capacitar
essa Guarda Nacional? Qual a doutrina, e qual o respaldo legal para o emprego
coercitivo dessa Guarda Nacional?
O cenário
– mundial e interno das nações – é cada vez mais volátil, incerto, complexo e
ambíguo, além de extremamente perigoso.
No mundo inteiro, as novas ameaças e a diversidade de meios à disposição
dos possíveis adversários estão indicando que as soluções militares passam pelo
domínio das contramedidas necessárias ao enfrentamento das ameaças baseadas em
tecnologias disruptivas. Hoje, uma pessoa comum pode ser facilmente recrutada
para exercer um papel de sensor de Inteligência, ou de um paramilitar, operando
meios capazes de promover o crime, ou atos de grande letalidade, valendo-se do
5G, da Internet das Coisas (IoT), da Inteligência Artificial (IA), ou das Redes
Sociais. Reinventar o guarda da esquina para combater os inimigos do Sec XXI –
criar uma Guarda Nacional – e deixar de investir nos recursos humanos e
instituições previstas na Constituição, já destinadas à Segurança e Defesa
Nacional, é o mesmo que dizimar as nossas legiões, de propósito.
Gen Div
R1Marco Aurélio Vieira
Foi
Comandante da Brigada de Operações Especiais e da Brigada de Infantaria
Paraquedista
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