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Crônica

Com a partida de Carlinhos Lyra, acabou nosso carnaval


Com a partida de Carlinhos Lyra, acabou nosso carnaval - Gente de Opinião

No início dos anos 80, fui convidado por um grupo de amigos bascos para assistir ao show de um dos maiores saxofonistas tenor de todos os tempos, o inoxidável Stan Getz, que estava se apresentando no Teatro Municipal de Lima, no Peru.

Para minha surpresa, naquela noite memorável o jazz tirou o chapéu para a bossa-nova, e o que se viu, para delírios da plateia, foi um desfolhar de notas musicais em pétalas de acordes dissonantes num retumbante ecoar da criatividade brasileira soando como trombetas angelicais no saxofone tenor do lendário Stan Getz hipnotizando los hermanos da república do Peru, à beira do oceano Pacífico, no coração da América Latina. Cerca de 99% do repertório do show foi só pura bossa nova!!

Meus amigos bascos não perceberam, mas a antena da sensibilidade captou com clareza solar o espírito do bruxo Carlinhos Lyra livre, leve e solto permeando todo o espaço daquela casa de espetáculo! Sem dúvida que aquela quizomba bossanovista era um réquiem à alma do poeta Vinícius de Moraes, que morreria naquele mesmo ano.

Só então compreendi que Stan Getz amava a bossa nova e João Gilberto, que amava Tom Jobim, que amava João Donato, que amava Vinícius de Moraes, que amava Jonhnny Alf, que amava Ronaldo Bôscoli, que amava Toquinho, que amava Newton Mendonça, que amava Billy Blanco, que amava Nara Leão, que amava Milton Banana, que amava Roberto Menescal, que amava Baden Powell, que amava Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, que amava Elizeth Cardoso, que amava Ari Barroso, que amava João Gilberto, que amava toda a família!

O calor de amorosidade provocada por essa trupe de geniais artistas incendiou o coração de Frank Sinatra, que, amando a todos, gravou Garota de Ipanema para que as pessoas em todos os quadrantes da terra ouvissem a poção mágica produzida em solo tupiniquim!

Diz a lenda que tudo começou na Rua Nascimento e Silva, cento e sete, com a Divina Elizeth cantando as Canções do Amor Demais! A matéria-prima da magia era a batida sincopada inventada por João Gilberto numa pousada em Minas Gerais, em passagem da Bahia para o Rio de Janeiro, numa noite com muita cannabis sativa, onde só estavam ele, a viola e Deus!

O Brasil dos anos 40 e 50 cantava grosso, voz empostada até o último gargalo, a dramaticidade em alto volume, os acordes perfeitos maiores e menores dando o tom da nostalgia e da boa dose de lirismo que herdamos do povo lusitano, onde nossas roupas comuns dependuradas, na corda qual bandeiras agitadas, parecendo um estranho festival. Era o império dos senhores do canto perfeito e acabado como Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves, Francisco Alves, Cauby Peixoto e Orlando Silva – dentre outros.

Os jovens da zona sul do Rio de Janeiro, que amavam os Beatles e os Rolling Stones, amavam ainda mais a liberdade e a revolução estética, procurando sarna pra se coçar musicalmente de um jeito diferenciado; eram risonhos, sonhadores e irrequietos boçais, por isso procuravam uma bossa diferenciada, uma bossa nova!

Enquanto o governo Juscelino Kubitschek prometia 50 anos em 5, João Gilberto desenhava o Samba de Uma Nota Só, enquanto Carlinho Lyra compunha, com o poetinha Vinícius de Moraes, “Coisa mais linda”, “Você e eu", "Marcha da quarta-feira de cinzas", "Minha namorada", “Primavera” e "Sabe você", já em 1964, em plena Ditadura Militar.

No show de Stan Getz, o feitiço da antropofagia brasileira se voltou contra o feiticeiro, devorou o jazz clássico, apimentou com a batida sincopada plasmada a partir da batida do samba, temperou o caldo musical com o refinamento de Antônio Carlos Brasileiro Jobim, o violão requintado de Carlinhos Lyra e Toquinho, a poesia em prosa de Vinícius de Moraes e deu a conhecer ao mundo o tamanho da espiritualidade musical do povo brasileiro!

Com a partida do mestre Carlos Lyra, nossas violas ficam em silêncio obsequioso por enquanto em deferência à saudade que nos cabe vivenciar no coração e nos olhos, que agora se inundam de copiosas lágrimas, mas, daqui a pouco, se voltarem a ressonar, de suas cordas eclodiram acordes dissonantes feito fogos de artifícios, demonstrando que o melhor da arte desse músico maravilhoso ficou para sempre no mais profundo recôncavo dos nossos corações!

Acabou nosso carnaval, saudades e cinzas foi o que restou...

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