Terça-feira, 6 de fevereiro de 2024 - 11h23
Já é
a segunda vez que escrevo sobre as escatologias, fascina-me a diferença de significado
de duas palavras escritas exatamente da mesma forma e com a mesma origem grega.
São palavras homônimas perfeitas. Uma pertence
à Teologia/Filosofia e a outra à Biologia.
A escatologia que trata das
implicações teológicas do fim do mundo – sobretudo o Juízo Final – é uma
palavra cunhada no século XIX a partir do grego éskhatos, que significa
“extremo, último”. O escatológico que se relaciona às fezes é um termo criado também
no século XIX, igualmente do grego, mas neste caso a palavra de origem é
diferente: skatós, “excremento”.
Portanto,
escatologia tanto pode ser o estudo dos excrementos (coprologia), quanto o ramo
da Teologia e da filosofia que se preocupa com o fim dos tempos humanos. À
primeira vista, é até hilário a imensurável disparidade entre as duas acepções
da palavra, mas a linha figurativa que separa uma da outra pode ser mais tênue
do que se pensa.
A
simbólica “cagada” de poderosos dirigentes mundiais pode originar uma
hecatombe final. Uma escatologia pode provocar a outra. Rsrsr. Enquanto uma
escatologia estuda o efeito, o fedor da merda mundial espalhada no universo, pela
ação absurda de ditadores humanos, a outra dirá, mediante estudos apurados,
para onde iremos no post mortem, aliviados da sujeira corporal, como se
pairasse no ar e acima das escatologias, uma consciência divina, alheia aos
significados, mas preocupada com o destino da humanidade.
A janela do fim da vida vem
caprichando nas vistas oriundas da bola de cristal da imaginação: catástrofes,
juízo final, apocalipse, dilúvio, profecias, bug do milênio, conspirações,
calendário Maia, choque com cometas. Histórias profetizando o fim do mundo
existem desde que o homem adquiriu consciência crítica da sua própria
existência, assimilando o medo inerente e transferindo ao imaginário cerebral
suas fantasias escatológicas.
A maioria humana esclarecida sempre
foi fascinada por extremos, principalmente quando a ciência não consegue
desvendar segredos, convenientemente: o início e o fim da vida ou o início e o
fim do mundo, deus e o diabo ou o bem e o mal. Se focarmos o olhar com mais
rigor, veremos que não se trata de um problema de evidência (matéria), mas de
crença (fé), como se um lado do hemisfério cerebral estivesse em constante luta
com o outro.
A razão tem medidas pra quase
tudo, a ciência explica a maior parte dos fenômenos que nos cercam. Mas na
fronteira do quase com a verdade científica, existe uma região cerebral
dominada pela emoção, que especula com a imaginação, que transcende com a fé,
que considera a inteireza do ser enquanto ser, com a metafísica.
E a grande diferença entre
esses dois ramos do conhecimento é que o metafísico não tem laboratório: o
homem não aceita a morte, ele exige a perenidade; as maravilhas
materiais do mundo não o satisfazem, insiste com o sobrenatural, com o
transcendental; a pequenez da terra em relação ao universo não o incomoda. A
simples existência o angustia, sonha com a igualdade perante os deuses, com o
manjar infinito do céu; ignora as evidências e acredita em varinha de condão, paraíso,
nirvana, um admirável e imaginativo mundo novo, pós mortem, criado por ele, ao longo dos milênios. Esta é a
escatologia que o agrada!
A conciliação é deveras
difícil, diria impossível, a emoção é o afago humano às obscenidades da razão e
às agruras da vida! Nós acalentamos as nossas crenças e os nossos sonhos, como
contrapeso ao que causa sofrimento e angústia. O Big Bang, o universo em
expansão, os buracos negros, a imensidão do espaço, acontecimentos há bilhões
de anos, a nanotecnologia, as células tronco, a física quântica, os telescópios
espaciais, são para os nerds. Somos a parte do mundo que simplifica a existência,
aquela que optou pelo cérebro de hemisfério único, como os da inteligência
artificial, na expectativa que a evolução trabalhe pela unificação da emoção
com a razão.
Nada como sonhar simples, ter
amigos, trocando lisonjas racionais; viver a expectativa da ficção, lendo;
acreditar no amor, amando; imaginar a estética da perfeição, poetando; vibrar
com o sexo, beijando; viajar com os olhos pela imensidão do mar, sentindo o
spray marinho na face; apreciar os astros visíveis, como enfeites ao planeta Terra;
nada como acreditar na eternidade, em companhia da corte celestial, ouvindo
cantos gregorianos, sem excrementos, apagando da vida e do dicionário, uma das
escatologias.
Início e fim do mundo estão
entrelaçados na emoção humana, de tal forma que pseudobruxos de vários naipes e
épocas, teorias pseudocientíficas e místicas ocupam espaços nos meios de
comunicação, transitam livremente pela imaginação, com foros de verdade
absoluta: a última vista desta janela foi a que determinou que o fim dos tempos seria no dia 21 de dezembro de 2012 – ou,
mais precisamente, no fim do calendário Maia. Não divulgaram a hora, mas
se sabia o antídoto: a desconfiança.
A vista da janela da
Filosofia, nas palavras de Nietzsche, nos ensinou que “a objeção, o desvio, a desconfiança alegre, a vontade de troçar são
sinais de saúde: tudo o que é absoluto pertence à patologia.” Eu e a grande maioria dos descrentes
troçamos, impiedosamente, dos que usaram o calendário Maia, para profetizar o
fim dos tempos. Só aos ficcionistas, aos fabuladores, aos roteiristas da magia
do cinema é dado enxergar a vista do fim do mundo, ainda que a inspiração lhes
venha num momento escatológico de evacuação, de alívio intestinal.
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