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Crônica

Janela Antirracista*


Janela Antirracista*  - Gente de Opinião

Das nossas janelas víamos as janelas dos vizinhos, o muro era baixo e nossa casa foi construída no centro de três terrenos, num nível mais alto. A maioria das vistas eram arquitetadas pela bisbilhotice, nada como xeretar a vida dos vizinhos. Praticamente ouvíamos quase tudo o que se dizia nas casas postadas nos dois lados, mas só víamos alguma coisa se as janelas estivessem abertas.

Éramos vizinhos, pelo lado esquerdo, da professora Balduína, esposa de um ex-prefeito, Aloísio Gonçalves, aliás a família Gonçalves deitava e rolava, se revezando na administração coronelista e branquela de nosso rincão. Pouco se conhecia de Zumbi dos Palmares e a tal Consciência Negra só brotou dezenas de anos depois.

Na casa do lado direito, eram três os moradores, destaque para as figuras femininas: a matriarca atendia pelo nome de Pombinha, D. Pombinha! Na aparência delicada até que se parecia com uma arribaçã, no entanto, pelas ações e grasnidos estremados, ouvidos extramuros, lembrava uma gralha, D. Gralha! A filha única, moça velha, mais se achava do que era, em qualquer dos ângulos ou características em que quiséssemos espiá-la: Edith queixinho! O detalhe facial, gerador da alcunha, dizia bem do conteúdo da carruagem, foi a primeira Candinha que conheci, mexeriqueira contumaz: ficou pra titia, nenhum varão se aventurou à parceria, capaz de desvendar-lhe os segredos da alma e do corpo. 

   Recordações fortes insistem em varar o tempo, não permitindo que ele se utilize da sua característica de esponja e apague da memória instantes que a razão teima em perenizar: eu fui alfabetizado pela referida “fessora” e me lembro do orgulho que dava andar ao lado daquela que estava a abrir-me o horizonte das letras, carregando uma vasilha com o puro leite da fazenda dos Gonçalves, destinado à merenda escolar.

  Nos anos sessenta, o leite in natura foi substituído pelo leite em pó americano, com a marca “Aliança para o Progresso”, projeto aliviador da consciência capitalista do presidente John Kennedy, para saciar, parcialmente, a fome das crianças que viviam na parte sul do planeta, conhecida como Terceiro Mundo. Na merenda escolar o leite americano era presença obrigatória, exigindo das crianças o porte de uma canequinha de alumínio, como apetrecho escolar de combate à desnutrição, porém nesta época eu já estava no ginásio.

Outra das persistentes lembranças infantis me valeu uma surra de meu pai e a recomendação autoritária que me acompanhou ao longo da vida: − Você vai apanhar pra aprender a não mexer com a filha dos outros, você é muito pequeno pra ficar escrachando com a filha alheia.

O verbo escrachar sequer fazia parte do meu diminuto vocabulário, mas permaneceu no cantinho da saudade das travessuras que valeram a pena: tínhamos cerca de oito anos. Terezinha não combinava com a cor nem com a aspereza do sertão baiano, um violino afinado numa orquestra de zabumbas, era branquinha, exageradamente branca, ou como diziam os poetas de antão − da cor e da pureza de um lírio − e a mim me atiçava a mulata curiosidade, como se o sexo prematuro quisesse desabrochar: qual a cor e o formato do segredo, que seu corpo, ainda sem curvas, escondia por dentro das vestes?

A filha da professora tinha os olhos claros e usava óculos de aro grosso e preto, que me encantavam, quer pelo contraste, quer pela novidade da tela, incomum à idade, nos longínquos anos cinquenta. Para os padrões atuais ela era cheinha, mas isso era o que menos importava, naquela época e naquela idade. Os frequentes contatos corpo a corpo, pele a pele, nos momentos do recreio, abriam perspectivas de afeto nas diferenças, ignorando convenções e preconceitos, dando ao desejo a chance de se mostrar, ainda que vivêssemos a pré-puberdade. 

Éramos colegas em uma escola localizada próxima aos trilhos da ferrovia Leste Brasileiro, uma acanhada salinha onde se acotovelavam cerca de vinte crianças. A rua, já não me lembro o nome, nem sei se tinha nome, era conhecida como “rua de baixo”, era a mesma que mais adiante passava à frente do Ginásio Sagrado Coração de Jesus, dos irmãos maristas, local onde mais tarde fui iniciado no curso ginasial.

O sexo, a curiosidade infantil, o gênero e o afeto, do outro ou da família, são tecidos com o mesmo fio da convivência social, mas a repressão comportamental forte pode modificar a sexualidade: embora tratados como tal, não éramos assexuados, buscávamos sensações proporcionadas pelo toque ou contato, contexto diretamente ligado e dependente de fatores genéticos e principalmente culturais.

De fato, fomos vencidos pelo desejo de xeretar algo que se adivinhava prazeroso: num dia claro de verão, nos escondemos num quartinho dos fundos da casa dela e nos despimos, e nos tocamos, demoradamente, até que fomos dedurados pela empregada e eu fui entregue ao meu pai, para sofrer a punição, pelo ato obsceno de ter a coragem de descortinar o branco proibido, embora naquela idade o sexo fosse incolor.

Perdi a agradável companhia da professora Balduína e fui matriculado na escola da temida professora Maria do seu Jaguaré, morena musculosa, useira de régua e palmatória.

A delicada Terezinha, mesmo vizinha, era vigiada e proibida da convivência, até que o avançar das idades, o desabrochar do preconceito de cor e o capital, nos afastaram de vez: ela foi pra Salvador e eu só a encontrava em breves momentos das férias, já sem o viço do fato atemporal e vivenciando outras aventuras amorosas, próprias da evolução da idade, mesmo porque o segredo deixou de ser segredo, embora a vista daquela vaginazinha rosada, gordinha e nua de pelos, esteja tatuada na janela do meu córtex cerebral, produzindo vistas antirracistas, com a bandeira fictícia do somos todos iguais.

·       Adaptada da crônica Janela de Vizinhos, publicada no livro De Que me Vale a Janela sem a Vista, do mesmo autor.

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