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Crônica

Janela de trem


William Haverly Martins - Gente de Opinião
William Haverly Martins

De minha vida o trem nunca se afastou! Na infância era uma janela por onde passava um filme interativo, quadro a quadro, o cenário e o figurino mudavam conforme o trem se aproximava da capital, Salvador. Os personagens, postados ao longo da ferrovia, respondiam com acenos ao apito mágico da protagonista a vapor.

Cada quadro despertava um tipo de emoção: à tardinha, era comum revoada de arribação, o gado sendo recolhido aos currais, aves em busca de um local para o pernoite e o semblante sertanejo, pesado e sem perspectiva, postado nas estações do caminho de ferro.

Os tons de verde se alternavam conforme a distância e os estragos da seca. E o vento! ah o vento escrevia um capítulo à parte sobre o meu rosto, refrescando o calor do Nordeste e me embalando a viagem, com um sentimento de liberdade, feito o tapete mágico das histórias de Aladim.

− Tira a cabeça da janela, meu filho, é perigoso!

Aqui e acolá viam-se restos de água em lagoas, pequenos bebedouros de animais, mais lama do que água. A vida persistia, mesmo com tantas adversidades. Meu pai dizia e repetia: − não existe um sertanejo que não seja sobrevivente.

 Mesmo com o barulho infernal, provocado pelo deslocamento do trem, não raro ouvia-se o orneio burro de um jumento, como se estivesse protestando pela invasão de território. Aquela área de pasto era deles. Às vezes o vagão passava pertinho de um jumento e a gente podia ver a cara enfezada que eles faziam, mostrando os dentes amarelos. Minha mãe dizia que era de medo, medo do monstro de ferro, movido a fogo e água, e que gritava forte nas curvas do caminho, afastando da linha, animais desavisados.

Meu pai era comerciante, podia pagar uma cabine, onde dormiam duas pessoas, com direito a sanitário acoplado. Também existiam cabines para 4 pessoas, com e sem sanitários, e os vagões com bancos acolchoados, onde viajava o povão. Lembro de seis vagões: depois da máquina vinha o de cargas; dois só com poltronas para as pessoas que faziam viagens curtas ou não podiam pagar por uma cabine; um vagão para o bar/restaurante, com mesas e serviços à la carte; e os dois últimos, onde ficavam as cabines duplas e quádruplas. 

O trem da Leste Brasileiro era praticamente o único meio de transporte entre Salvador e as cidades do sertão. Este, que tantas marcas deixou na minha infância, vinha de Juazeiro e Petrolina, passava por Senhor do Bonfim, meu rincão natal, onde recebia passageiros de outro trem que vinha de Itaberaba, Rui Barbosa, Jacobina, Campo Formoso, Pindobaçu, Piritiba, Itinga e outras cidades da linha da grota, com destino à capital da Bahia, duas vezes por semana. Havia mais de dez paradas, no percurso Senhor do Bonfim/Salvador.

A linha da grota serviu de mote a Raul Seixas na imortal canção O Trem das Sete:

(...) Quem vai chorar, quem vai sorrir?
Quem vai ficar, quem vai partir?
Pois o trem está chegando, tá chegando na estação
É o trem das sete horas, é o último do sertão
Do sertão

Cariacá, Serra da Itiúba, açude de Camandaroba, barragem da Leste, rio Itapicuru, cidade de Queimadas, Santa Luz, rio Jacurici, eram nomes regionais conhecidos pelos moradores, que usavam os trens da Leste.

Lembro de mais duas cidades importantes, postadas à margem esquerda do leito da ferrovia, sentido capital: Serrinha e Alagoinhas. Em Serrinha, bebia-se leite quente com pão recheado com banana frita e tapioca amanteigada, em Alagoinhas, a vedete era a laranja de umbigo, doce e sem caroços, mais tarde conhecida no resto do Brasil como laranja baiana.

Os gritos dos vendedores nas estações, oferecendo produtos variados, até hoje estão reverberando na memória. Difícil esquecer!

O tempo passava pela janela tão infantilmente colorido e puro, que a vontade de repetir a experiência começava assim que o trem parava, ao final da jornada, como se a gente quisesse perpetuar o estado de felicidade, causado pelas imagens da janela, o embalo do vagão e o barulho impregnado aos ouvidos. Situações que, à noite, instigavam o sono, o início de uma nova jornada ao mundo fantástico dos sonhos.

Os trens balam de hoje, correndo a mais de 350 km por hora, além de confundirem as vistas, não possuem o glamour melancólico dos da minha infância: a paisagem passa tão rápida pela janela, que emperra as lentes visuais da máquina humana de filmar, dificultando o exercício da imaginação, do deleite! Ademais quando os olhos apreciam as várias janelas, em um trem que viaja em baixa velocidade, é gostoso acenar aos viajantes e receber o aceno de volta – boa viagem!  

Saudade é pouco, sinto nostalgia daquelas viagens, tantas vezes repetidas, chega a doer, o cantinho reservado à janela das lembranças, com suas vistas memoráveis.     

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