Sábado, 14 de maio de 2022 - 09h05
De minha vida o trem nunca se
afastou! Na infância era uma janela por onde passava um filme interativo,
quadro a quadro, o cenário e o figurino mudavam conforme o trem se aproximava
da capital, Salvador. Os personagens, postados ao longo da ferrovia, respondiam
com acenos ao apito mágico da protagonista a vapor.
Cada
quadro despertava um tipo de emoção: à tardinha, era comum revoada de
arribação, o gado sendo recolhido aos currais, aves em busca de um local para o
pernoite e o semblante sertanejo, pesado e sem perspectiva, postado nas
estações do caminho de ferro.
Os
tons de verde se alternavam conforme a distância e os estragos da seca. E o
vento! ah o vento escrevia um capítulo à parte sobre o meu rosto, refrescando o
calor do Nordeste e me embalando a viagem, com um sentimento de liberdade,
feito o tapete mágico das histórias de Aladim.
− Tira
a cabeça da janela, meu filho, é perigoso!
Aqui e
acolá viam-se restos de água em lagoas, pequenos bebedouros de animais, mais
lama do que água. A vida persistia, mesmo com tantas adversidades. Meu pai
dizia e repetia: − não existe um sertanejo que não seja sobrevivente.
Mesmo com o barulho infernal, provocado pelo
deslocamento do trem, não raro ouvia-se o orneio burro de um jumento, como se
estivesse protestando pela invasão de território. Aquela área de pasto era
deles. Às vezes o vagão passava pertinho de um jumento e a gente podia ver a
cara enfezada que eles faziam, mostrando os dentes amarelos. Minha mãe dizia
que era de medo, medo do monstro de ferro, movido a fogo e água, e que gritava
forte nas curvas do caminho, afastando da linha, animais desavisados.
Meu
pai era comerciante, podia pagar uma cabine, onde dormiam duas pessoas, com
direito a sanitário acoplado. Também existiam cabines para 4 pessoas, com e sem
sanitários, e os vagões com bancos acolchoados, onde viajava o povão. Lembro de
seis vagões: depois da máquina vinha o de cargas; dois só com poltronas para as
pessoas que faziam viagens curtas ou não podiam pagar por uma cabine; um vagão
para o bar/restaurante, com mesas e serviços à la carte; e os dois últimos,
onde ficavam as cabines duplas e quádruplas.
O trem
da Leste Brasileiro era praticamente o único meio de transporte entre Salvador
e as cidades do sertão. Este, que tantas marcas deixou na minha infância, vinha
de Juazeiro e Petrolina, passava por Senhor do Bonfim, meu rincão natal, onde
recebia passageiros de outro trem que vinha de Itaberaba, Rui Barbosa,
Jacobina, Campo Formoso, Pindobaçu, Piritiba, Itinga e outras cidades da linha
da grota, com destino à capital da Bahia, duas vezes por semana. Havia mais de
dez paradas, no percurso Senhor do Bonfim/Salvador.
A linha da grota serviu de
mote a Raul Seixas na imortal canção O Trem das Sete:
(...) Quem vai chorar, quem
vai sorrir?
Quem vai ficar, quem vai partir?
Pois o trem está chegando, tá chegando na
estação
É o trem das sete horas, é o último do sertão
Do sertão
Cariacá,
Serra da Itiúba, açude de Camandaroba, barragem da Leste, rio Itapicuru, cidade
de Queimadas, Santa Luz, rio Jacurici, eram nomes regionais conhecidos pelos
moradores, que usavam os trens da Leste.
Lembro
de mais duas cidades importantes, postadas à margem esquerda do leito da
ferrovia, sentido capital: Serrinha e Alagoinhas. Em Serrinha, bebia-se leite
quente com pão recheado com banana frita e tapioca amanteigada, em Alagoinhas,
a vedete era a laranja de umbigo, doce e sem caroços, mais tarde conhecida no
resto do Brasil como laranja baiana.
Os
gritos dos vendedores nas estações, oferecendo produtos variados, até hoje
estão reverberando na memória. Difícil esquecer!
O
tempo passava pela janela tão infantilmente colorido e puro, que a vontade de
repetir a experiência começava assim que o trem parava, ao final da jornada,
como se a gente quisesse perpetuar o estado de felicidade, causado pelas
imagens da janela, o embalo do vagão e o barulho impregnado aos ouvidos.
Situações que, à noite, instigavam o sono, o início de uma nova jornada ao
mundo fantástico dos sonhos.
Os
trens balam de hoje, correndo a mais de 350 km por hora, além de confundirem as
vistas, não possuem o glamour melancólico dos da minha infância: a paisagem
passa tão rápida pela janela, que emperra as lentes visuais da máquina humana
de filmar, dificultando o exercício da imaginação, do deleite! Ademais quando
os olhos apreciam as várias janelas, em um trem que viaja em baixa velocidade,
é gostoso acenar aos viajantes e receber o aceno de volta – boa viagem!
Saudade
é pouco, sinto nostalgia daquelas viagens, tantas vezes repetidas, chega a
doer, o cantinho reservado à janela das lembranças, com suas vistas
memoráveis.
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