Sexta-feira, 6 de maio de 2022 - 11h16
Em certas fases da vida
sofremos uma crise de sonhos, são tantos em revoada invisível a me descerem
goela abaixo, que me reviram o estômago, causando-me indigestão quimérica. Às
vezes tenho medo de que minha cabeça não suporte a pressão da ressaca dos sonhos,
é muito pior do que o efeito posterior a uma bebedeira, e pode descambar para
momentos depressivos.
É como se você quisesse ter o
domínio do tempo e das suas ações futuras, é como se você desejasse a
inexistência de problemas, um mundo bem sucedido, onde os relacionamentos
conjugassem o verbo amar com desenvoltura. Em milhares de anos, a evolução não
destruiu o lado ruim do ser humano, nem lhe deu a chance de oferecer a outra
face, e a humanidade paga pelo desequilíbrio: inventamos o humano, com toda a
sua capacidade de reflexão polissêmica e a habilidade de mergulhar na difícil e
desafiadora viagem do autoconhecimento.
Os sonhos possuem muitas
janelas, difícil escolher a vista certa, aquela passível de se transformar em
caminhada edificante. A maioria se confunde com quimeras: a vista, às vezes, é
um abismo preocupante.
Entre os sonhos, temo os que
me fogem ao domínio, os que tem vida própria e tripudiam da minha cara diante
do infortúnio, forçando um encontro com o álcool, com as drogas ou com a morte,
como símbolos do esquecimento, fim da consciência, início da loucura.
A prática da literatura tem
conseguido me libertar dos grilhões, na construção de personagens que dividem
comigo as agruras do caminho, o sofrimento da irrealização de sonhos possíveis.
Ao conduzir um enredo, sinto-me como um condutor de destinos em busca de
credibilidade, aliviando a dramaticidade dos meus sonhos, das minhas fantasias,
da minha própria vida.
Escrever para mim é como
exercitar, treinar a libertação interior, cada personagem faz parte de um mundo
de mentiras bem engendradas, capazes de alcançar o íntimo do leitor. Ser
mentiroso é condição sine qua non a um bom ficcionista, contudo nem sempre as
pessoas entendem a mentira, quando o autor é personagem dele mesmo.
Dizem que o vinho é o elixir
da alma; muitos escritores só se inspiram depois de várias doses de whisky. Eu
não nego a ajuda do álcool na inspiração, mas sei que ela não viria sem
transpiração. Prefiro descrever as ações de um bêbado, de um drogado, em pleno controle
da consciência, embora me valha de vivências.
Os sonhos são fundamentais no
dia a dia de um escritor, são as janelas onde ele vai buscar complementação aos
argumentos, mas nada supera uma boa dose de mentiras. Sem a janela da mentira e
suas incontáveis vistas, como matéria prima, é impossível escrever, não é à toa
que os versos de Fernando Pessoa reverberam ao longo do tempo: o poeta é
um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que
deveras sente. Um bom escritor, mediante argumentos convincentes, ao
descerrar a janela da mentira, revela aos leitores a vista da verossimilhança.
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