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Crônica

Janela Verossímil


 William Haverly Martins - Gente de Opinião
William Haverly Martins

Em certas fases da vida sofremos uma crise de sonhos, são tantos em revoada invisível a me descerem goela abaixo, que me reviram o estômago, causando-me indigestão quimérica. Às vezes tenho medo de que minha cabeça não suporte a pressão da ressaca dos sonhos, é muito pior do que o efeito posterior a uma bebedeira, e pode descambar para momentos depressivos.

É como se você quisesse ter o domínio do tempo e das suas ações futuras, é como se você desejasse a inexistência de problemas, um mundo bem sucedido, onde os relacionamentos conjugassem o verbo amar com desenvoltura. Em milhares de anos, a evolução não destruiu o lado ruim do ser humano, nem lhe deu a chance de oferecer a outra face, e a humanidade paga pelo desequilíbrio: inventamos o humano, com toda a sua capacidade de reflexão polissêmica e a habilidade de mergulhar na difícil e desafiadora viagem do autoconhecimento.

Os sonhos possuem muitas janelas, difícil escolher a vista certa, aquela passível de se transformar em caminhada edificante. A maioria se confunde com quimeras: a vista, às vezes, é um abismo preocupante.

Entre os sonhos, temo os que me fogem ao domínio, os que tem vida própria e tripudiam da minha cara diante do infortúnio, forçando um encontro com o álcool, com as drogas ou com a morte, como símbolos do esquecimento, fim da consciência, início da loucura.

A prática da literatura tem conseguido me libertar dos grilhões, na construção de personagens que dividem comigo as agruras do caminho, o sofrimento da irrealização de sonhos possíveis. Ao conduzir um enredo, sinto-me como um condutor de destinos em busca de credibilidade, aliviando a dramaticidade dos meus sonhos, das minhas fantasias, da minha própria vida.

Escrever para mim é como exercitar, treinar a libertação interior, cada personagem faz parte de um mundo de mentiras bem engendradas, capazes de alcançar o íntimo do leitor. Ser mentiroso é condição sine qua non a um bom ficcionista, contudo nem sempre as pessoas entendem a mentira, quando o autor é personagem dele mesmo.

Dizem que o vinho é o elixir da alma; muitos escritores só se inspiram depois de várias doses de whisky. Eu não nego a ajuda do álcool na inspiração, mas sei que ela não viria sem transpiração. Prefiro descrever as ações de um bêbado, de um drogado, em pleno controle da consciência, embora me valha de vivências.

Os sonhos são fundamentais no dia a dia de um escritor, são as janelas onde ele vai buscar complementação aos argumentos, mas nada supera uma boa dose de mentiras. Sem a janela da mentira e suas incontáveis vistas, como matéria prima, é impossível escrever, não é à toa que os versos de Fernando Pessoa reverberam ao longo do tempo: o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Um bom escritor, mediante argumentos convincentes, ao descerrar a janela da mentira, revela aos leitores a vista da verossimilhança.

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