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Crônica

O Contraditório Assusta


O Contraditório Assusta - Gente de Opinião

O contraditório, no pensamento humano, não é nem deve ser uma verdade definitiva, na maioria das vezes, são várias faces de uma mesma moeda, dificultando a compreensão de quem se debruça sobre os fatos pronunciados. A imprensa é mestra na construção ou desconstrução de um contraditório viável às circunstâncias ou ao consenso moral de uma atitude posta na vitrine do tempo. Com o espírito ainda em dúvida, se saía ou não do corpo morno, a imprensa apresentou uma das verdades comportamentais de um herói deificado, mas à medida que o corpo ia esfriando, foi acrescentando outras versões ao velho contraditório. Divergências convergentes!

Diante da morte de um ídolo, seguida de comoção popular, que apaga todas as falhas e todos os erros do defunto famoso, como argumentar com um novo contraditório, o inverso do que é, sem ferir o sentimento público abalado? A morte comovente de Maradona, compatível com a paixão pelo futebol, inviabilizava o argumento contraditório de que ele era viciado em drogas e desrespeitou as regras do futebol, fazendo um gol com a mão na copa do mundo de 1986. La mano de Dios, segundo o argentino, e the hand of demon, na visão dos ingleses.

Em novas versões morais, apresentadas no Fantástico (29/12), a imprensa foi mais longe, além de viciado em cocaína, o craque festejado era mafioso, membro da Camorra Napolitana, claramente um péssimo exemplo para jovens esportistas de qualquer nacionalidade, enfim, um mau-caráter. Para quem não é argentino e desconhecia a vida pregressa do craque, ovacionado na praça que abriga a Casa Rosada, onde foi velado à espera da terra fria, as informações funcionaram como um contraditório assustador. Deus ou demônio? Craque ou vilão? “Meu maior erro foi experimentar drogas, aos 24 anos de idade”.

Até parecia que a imprensa brasileira abdicava do simples dever de informar, para se investir no direito de julgar. Craques como Maradona, Zico, Pelé, Messi, Senna, Hamilton e tantos outros, estão imunes aos julgamentos tendenciosos, ainda que verdadeiros: Na sua genialidade, Maradona alcançou, pelos feitos, um sagrado nicho, no estádio cárdio/mental dos torcedores. Não adiantam contraditórios, nada vai mudar o conceito de Maradona na mente e no coração dos argentinos, napolitanos, espanhóis e demais apaixonados pelo futebol. Goooolaaaço!!!

Não é de agora que a máxima, os brasileiros amam odiar os argentinos, e os argentinos odeiam amar os brasileiros”, reverbera entre nós. Apesar de esporte coletivo, as obras de arte de Maradona são de uma solidão impressionantemente incomparáveis. A precisão de seu chute e as firulas de bailarino, entre rivais, nem pareciam de uma pessoa inquestionavelmente real. Odiar a genialidade, por ser viciado ou argentino, seria como negar as palavras fortes de seu poema existencial, escrito com as pernas e a mão, expondo nossas fraquezas à terrível dor da comparação invejosa. Nem a morte acabou com a comparação viável entre craques, para os argentinos, se Pelé é rei, Maradona é deus, o certo é que ambos descansarão na morada imortal dos mitos do futebol.

Por muitos anos fui apaixonado pela filosofia de Soren Kiekeggard, um solitário dinamarquês, que me encantava com a lucidez de seu pensamento, lembro que ele dizia, mais ou menos, o seguinte: o início da infelicidade humana se encontra na comparação entre as pessoas e só a dor da solidão temporária nos ensina a sair dessa armadilha do pensamento. Para viver bem o coletivo, devemos trocar vivências, sem comparações, amar e ser amado, sem as rabugices e exigências da idade. “A porta da felicidade abre só para o exterior; quem a força em sentido contrário acaba por fechá-la ainda mais.” (SK)

Recebi de um leitor, a quem agradeço, por conta do meu artigo, Desconstruindo o racismo, uma versão contraditória, para os conceitos de negro e preto, da professora doutora Ynaê Lopes, da Escola Superior de Ciências Sociais e História da FGV: "Discutir que termo é mais adequado para se referir aos negro(a)s e/ou preto(a)s brasileiros é, por um lado, discutir o caráter estruturante do racismo na sociedade brasileira. Historicamente, os dois termos carregam as pechas da instituição escravista e das políticas racistas que marcaram a trajetória de exclusão dos afrodescendentes no Brasil, tendo sido utilizados como forma de menosprezar tais pessoas nas mais diferentes formas e situações. Dessa feita, a escolha mais adequada está vinculada às formas por meio das quais negro(a)s e preto(a)s do Brasil se identificam e se compreendem como indivíduos. É a voz negra e preta (na sua multiplicidade) que precisa ser respeitada.” Obrigado, amigo, não a conhecia, mas gostei do pensamento.

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