Quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021 - 11h08
Dois amigos de fé, adeptos da
vida/parábola a dois remos* – oração e ação −, bastante conhecida no meio
religioso, desconfiados que o significado simbólico da alegoria nada mais era
do que o efeito no corpo dos dois lados do cérebro humano, combinaram em
aprofundar os estudos, antes de partirem para o além: − quem partir primeiro
volta pra dar um sinal de vida após a morte. Aprenderam com Nietsche que “se
um homem tiver realmente muita fé, pode dar-se ao luxo de ser cético”, complementando
com outra frase do mesmo autor: “a fé é ignorar tudo aquilo que é
verdade”.
Continuando os estudos,
compreenderam que o homem foi premiado, pela evolução darwiniana, com um
cérebro de dupla feição, único na fauna, ou seja, formado por duas metades, de aparência semelhante, conhecidas
pelo nome de hemisférios
cerebrais. Embora externamente
parecidos, possuem funções diferenciadas: o hemisfério esquerdo manifesta-se
através do raciocínio e se expressa através da linguagem oral, a ação de
um dos remos, e o hemisfério direito, o faz através da emoção e
se expressa apenas através da linguagem visual (imagens), é a oração,
nomeada no outro remo. Tudo junto e misturado, sem a separação apelativa do
púlpito do clero.
É
da ação e não da fé o privilégio da existência. Gerar, nascer, comer, consultar,
hospitalizar, vacinar, curar, morrer, não dependem de fé. Todavia a neurociência,
hoje, sabe, que a função da emoção é humanizar a razão, importante componente
evolutivo, no processo da convivência. Todas as guerras, toda exploração
capitalista do homem pelo homem, todas as ações escravistas, todos os
preconceitos, se originaram/originam na razão.
Ainda assim são
muitas as pessoas que se utilizam deste conhecimento, inclusive com interesses religiosos/financeiros,
para explorar emocionalmente o racional.
Sábio é o caboclo amazonense que usa uma canoa, um remo sem nome e os
dois braços, para remar de um lado e do outro: vai longe, na sua humildade, vai
tão longe que afronta… Quando a civilização cobrou rapidez ao tempo, ele
recorreu à ciência e adicionou a rabeta.
Embora
convictos da veracidade da descoberta, os amigos queriam se aprofundar mais um
pouco sobre a vida, não uma vida qualquer, mas a vida após a morte, e partiram
para a fronteira entre os dois hemisférios, na tentativa de vencer a barreira
mística e mítica da morte, a morte emocional, com a possibilidade de a verdade retornar,
via pacto. Insistiram no acordo, mesmo sabendo que estavam mais próximos do
abismo surreal da direita, numa região em que não há centrão.
Viajaram pela dúvida shakespeariana
− to be or not to be that is the question −, pela moral cristã rousseauniana – o
homem nasce bom e a sociedade o perverte −, pelas páginas do Porque Não Sou Cristão,
de Roussel, pelo Pálido Ponto Azul de Carl Sagan, embutiram interrogações na
transvaloração dos valores morais defendidos por Nietsche, que sustentava que transvalorar é, em síntese, analisar os valores
morais, tendo em vista a manutenção daquilo que pode ser benéfico ao ser humano
e como promover a troca dos valores prejudiciais. Às vezes os amigos se entreolhavam com os
semblantes modificados, ora era o clarão do conhecimento ora a reflexão da
transcendência, e silenciavam: “As convicções são inimigas mais
perigosas da verdade do que as mentiras”.
Pode ser que além dos
ciprestes não haja nada, ou tudo; o que seria tudo? O que primeiro partiu, resolveu
escrever NO, no último escrito, ainda em vida, deixado na
caixa de e-mails e no WhatsApp do amigo. Filosofia, religião e ciência
estiveram na pauta das discussões. Darwin, Nietsche, Bertrand Roussel, Sagan e
muitos outros enfeitavam o bolo do conhecimento. Nietsche afirma que a
objeção, o desvio, a desconfiança alegre, a vontade de troçar são sinais de
saúde: tudo o que é absoluto pertence à patologia.
Para o polêmico alemão, as
pessoas eram boas por medo de sofrerem as punições do cristianismo e não apenas
pela natureza de serem boas. “Aquilo que se faz por amor está sempre além
do bem e do mal”. Ele advogava
uma vida de amor a dois, explorando o sexo e o corpo; nada deveria ser reprimido
entre quatro paredes, mas sim explorado e sentido. O amor está para além do bem
e do mal, ou seja, é uma coisa tão forte que não deve ser medida ou censurada,
apenas vivida. O amor, nascido num lado do cérebro, é a divindade!
O amigo que ficou, com o
hemisfério direito cheio de expressões saudosistas, foi em busca de respostas
sensatas para o enigmático NO, encravado no lado esquerdo. Presumiu
como sendo a sigla de Nietsche Obscuro, a teoria do nada. Pode
ser que na antessala da esperança não haja antessala, nem esperança, só vaidade,
abstrata e vazia, mas é de a natureza humana, vaidosamente, esperar. Esperar
faz bem? chato é quando essa espera se estende por longos anos, podendo chegar
ao nada de Alzheimer, quando o entendimento não entende, o conhecimento não
conhece e a oração não resolve. “O homem é uma corda esticada entre o
animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo. A esperança
é o derradeiro mal; é o pior dos males, porquanto prolonga o tormento”. O
último mal da caixa de Pandora!
O amigo que ficou, depois de
muito pensar, aboliu de seu dia-a-dia frases de autoajuda e promessas de
recompensas pós mortem, porquanto se convenceu que não eram oriundas do cadinho
das verdades humanas: “Há uma exuberância na bondade que parece ser maldade”.
O nada incomoda porque o ser, racionalmente vaidoso, quer ser, mas não quer
pensar em nada, pois sabe que a vida mais doce é não pensar em nada: Vida,
leva eu. “Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles
que não sabem voar”.
Certo de que a recompensa
final dos mortos é não morrer nunca mais, o amigo sobrevivente, sem a resposta
ambicionada, e já no leito de morte, permitiu-se um último pensamento que não
era dele, mas que fora adotado, como se dele fosse: “Amamos a vida não
porque estamos acostumados à vida, mas a amar. Há sempre alguma loucura no
amor, mas há sempre também alguma razão na loucura. Quem tem por que viver pode
suportar quase qualquer como”. E foi-se ao encontro do obscuro,
convicto que este mundo é a única parte da realidade que não se deve rejeitar, lembrando
que quando se coloca o centro de gravidade da vida, não na vida, mas no “além”
– no nada – tira-se da vida o seu centro de gravidade.
* https://www.a12.com/redacaoa12/historias-de-vida/os-dois-remos-do-barqueiro
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